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Foto do escritorRodrigo Viudes

O SUICÍDIO DA IMPRENSA

Quando a própria mídia tenta contra si ao sujeitar-se ao papel de mera 'curadora do infortúnio'. A derradeira abordagem e o 'tabu' na rotina das redações. Nossa reflexão no 59º aniversário do Centro de Valorização da Vida (CVV). Se precisar, ligue 188.

O Ano Velho já morreu e foi notícia ao seu tempo. O que já nasceu, desenvolve-se para que tudo se realize e, na alvorada de seus dias, partirá. E assim é o ciclo do tempo, e da vida. Há quem diga que, sob a chaga da pandemia, 2020 nem tenha vivido, mas apenas passado pela existência entre nós.

Assim também são muitos ao longo da caminhada. Por motivos muitas vezes insondáveis, abdicam de seus dias, despedem-se inesperadamente do tempo. E, já não bastasse a dor da prematura partida, que acomete os amigos e a família, ainda são alçados a estranha memória por derradeiras notícias.

É como se o último ato fosse o mais relevante, ou que justificasse todos os outros. O corpo estirado, inerte, é dito, escrito, falado, fotografado, filmado. A narrativa esgarçada se incumbe do resto: jovem, velho, homem, mulher, bêbado, artista, empresário, namorado, amante, traído, bandido. Suicidou-se.

Há quem publique. Inclusive, em Marilia. Na sanha pela audiência, hoje mensurada pelos cliques nos dispositivos digitais, o que por muito tempo ficou restrito à discrição, agora ‘virou notícia’, literalmente. Pior: tornou-se rotina, a ponto de empilhar-se nas buscas dos sites, tal como uma curadoria do infortúnio.

Este estranho apego à divulgação deste tipo de informação não tem, a meu pensar, alguma justificativa razoável. A alegação do ‘interesse público’, por exemplo, parece-me eivado de controvérsias. A quem beneficia a publicação sistemática de suicídios senão àquele que cobiça a sádica curiosidade alheia?

É sabido, aliás, há tempos, as consequências maléficas – e, porque não dizer, irreversíveis – do uso imprudente deste expediente ‘jornalístico’. Mesmo que de forma involuntária – pois não é crível que se trate aqui de ato deliberadamente criminoso – a crônica frequente dos suicídios acaba por estimulá-los.

É o que adverte a Organização Mundial da Saúde (OMS), que chegou a cunhar um ‘manual para profissionais da mídia’. Há orientações expressas, sobretudo, sobre como abordar o suicídio de forma geral e até específica. A leitura acurada e honesta pelos jornalistas já eliminaria muitas das últimas notícias sobre o assunto.


Veja, não se trata necessariamente de um tema ‘proibido’. Por mais que tenha (e ainda esteja) repousado como um tabu nas redações, o suicídio é uma daquelas pautas às quais se requer perícia, profundidade. É séria o suficiente para não ficar resumida ao estorvo do homeopático noticiário policialesco.

Cada vez que recai nesta esparrela diária, o jornalismo também atenta contra si. É como se renunciasse à sua sina de informar, de esclarecer, de restituir e de restaurar. À imprensa cabe o papel de debulhar o fenômeno como forma de desmistificá-lo e, até preveni-lo. Menos que isso é suicídio.
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