Uma análise prática das 21 reflexões teóricas organizadas pelo Vaticano para proteção de menores e da própria Igreja Católica
O inédito encontro de bispos católicos de todo planeta convocados pelo papa Francisco para debruçarem sobre "A Proteção dos Menores na Igreja" termina neste domingo (23) após quatro dias de palestras, testemunhos, orações e celebrações dedicados a tratar sobre combate ao assédio sexual na Igreja Católica.
Ainda no primeiro dia, os bispos receberam de Francisco um documento com 21 reflexões reunidas, muitas delas, das recomendações sugeridas pelo próprio episcopado, por ocasião de uma consulta providenciada pelo Vaticano, meses antes do encontro e enviadas à Santa Sé até janeiro.
Em linhas gerais, as reflexões servem como diretrizes para que os bispos saibam o que, como e com quem devem proceder em casos de recebimento de denúncias de assédio sexual contra o clero. O documento ainda recomenda maior rigor na formação e na avaliação psicológica de padres, entre outros pontos.
TEORIA X PRÁTICA
O problema é que, apesar do encontro episcopal, a questão dos abusos sexuais, que tem afundado a Igreja Católica em sua mais grave crise moral dos últimos tempos, segue na dependência de eventuais deliberações que os bispos - inclusive eles, não raro, acusados - venham ter em suas longínquas dioceses.
Ou seja: em vez de determinar de forma clara, objetiva e precisa o que deve ser feito no caso concreto de uma denúncia, o Vaticano 'terceirizou' a busca de soluções em um momento no qual deveria agir com protagonismo, em resposta e em respeito às milhares de vítimas de seus próprios clérigos.
Supunha-se que, a propósito do discurso de tolerância zero proposto pelo papa, o Vaticano utilizasse desta oportunidade tão rara para informar aos bispos e ao mundo, no mínimo, a imediata expulsão de abusadores de menores e uma apuração mais célere e rigorosa aos casos ainda pendentes. Só que não.
A pergunta que insiste é: qual é a garantia que os católicos têm de que os seus bispos se comprometerão em pôr em prática tais reflexões? Que controle a Santa Sé terá sobre isso? O que impedirá um bispo de engavetar provas - inclusive contra si próprio - nos recônditos de suas Cúrias? Ou ainda, de transferir padres que assediam ou extorquem de uma comunidade para outra?
JUSTIÇA E IMPRENSA
A concentração de poder no episcopado, como já o é, não deixa outra alternativa aos reclamantes - até que as 'reflexões' gerem gestos concretos - senão recorrer às autoridades civis e à imprensa. Até porque, no que depender das circunstâncias, de nada vai adiantar reclamar com o bispo.
Aliás, os escândalos de abuso sexual envolvendo padres, bispos e cardeais só se tornaram conhecidos depois que enfileiraram os processos criminais e estamparam as manchetes. Foi o acúmulo de indenizações e notícias que impeliu a Igreja a admitir tais graves pecados, e não seus tribunais eclesiásticos.
É por isso que, de todos os pontos de reflexão propostos por Francisco, o mais viável e necessário seja o último: a instituição de um organismo "de fácil acesso" e "autônomo" para as vítimas que queiram denunciar crimes praticados por padres e bispos. Esse ambiente, aliás, já existe. Chama-se delegacia de polícia.
PONTOS DE REFLEXÃO'
Confira abaixo os 21 'pontos de reflexão' propostos por Francisco:
1. Elaborar um vade-mécum prático no qual estejam especificados os passos a serem dados pelas autoridades em todos os momentos chave da emergência de um caso.
2. Organizar equipes de escuta, formada por pessoas preparadas e especializadas, onde será feito um primeiro discernimento dos casos das pressupostas vítimas.
3. Estabelecer critérios para o envolvimento direto do Bispo ou do Superior Religioso.
4. Aplicar procedimentos compartilhados para o exame das acusações, a proteção das vítimas e o direito de defesa dos acusados.
5. Informar as autoridades civis e as autoridades eclesiásticas superiores respeitando as normas civis e canônicas.
6. Fazer uma revisão periódica dos protocolos e das normas para salvaguardar um ambiente protegido para os menores em todas as estruturas pastorais; protocolos e normas baseados nos princípios da justiça e da caridade e que devem se integrar para que a ação da Igreja, também neste campo, seja conforme à sua missão.
7. Estabelecer protocolos específicos para a gestão das acusações contra os Bispos.
8. Acompanhar, proteger e cuidar das vítimas, oferecendo-lhes todo o necessário apoio para uma cura completa.
9. Incrementar a conscientização das causas e das consequências dos abusos sexuais através de iniciativas de formação permanente de Bispos, Superiores religiosos, clérigos e agentes pastorais.
10. Preparar percursos para o cuidado pastoral das comunidades feridas pelos abusos e itinerários penitenciais e de recuperação para os culpados.
11. Consolidar a colaboração com todas as pessoas de boa vontade e com os profissionais dos meios de comunicação para poder reconhecer e discernir os casos verdadeiros dos falsos, as acusações das calúnias evitando rancores e insinuações, fofocas e difamações (cf. Discurso à Cúria Romana, 21 de dezembro de 2018)
12. Elevar a idade mínima para o casamento a 16 anos.
13. Estabelecer disposições que regulamentem e facilitem a participação dos especialistas leigos nas investigações e nos vários níveis de juízo dos processos canônicos concernentes aos abusos sexuais e/ou de poder.
14. O Direito à defesa: é preciso também proteger o princípio de direito natural e canônico da pressuposta inocência até prova de culpabilidade do acusado. Por isso é preciso evitar que sejam publicadas listas de acusados, também por parte das dioceses, antes da investigação prévia e da condenação definitiva.
15. Observar o tradicional princípio da proporcionalidade da pena com relação ao crime cometido. Deliberar para que os sacerdotes e os bispos culpados de abuso sexual contra menores abandonem o ministério público.
16. Introduzir regras referentes aos seminaristas e candidatos ao sacerdócio ou à vida religiosa. Para os mesmos introduzir programas de formação inicial e permanente para consolidar sua maturidade humana, espiritual e psicossexual, assim como suas relações interpessoais e seus comportamentos.
17. Submeter os candidatos ao sacerdócio e à vida consagrada a uma avaliação psicológica por parte de especialistas qualificados e credenciados.
18. Indicar as normas que regulamentam a transferência de um seminarista ou aspirante religioso de um seminário a outro; assim como de um sacerdote ou religioso de uma diocese ou de uma congregação a outra.
19. Formular códigos de conduta obrigatórios para todos os clérigos, os religiosos, os funcionários de serviço e os voluntários, para delinear limites apropriados nas relações pessoais. Especificar os requisitos necessários para os funcionários e os voluntários, e verificar seus antecedentes criminais.
20. Ilustrar todas as informações e os dados sobre os perigos do abuso e os seus efeitos, sobre como reconhecer os sinais de abuso e sobre como denunciar os suspeitos de abuso sexual. Tudo isso deve ocorrer em colaboração com os pais, professores, profissionais e autoridades civis.
21. É necessário que seja instituído, onde ainda não foi feito, um organismo de fácil acesso para as vítimas que queiram denunciar eventuais crimes. Um organismo que seja autônomo, também com relação à Autoridade eclesiástica local e seja formado por pessoas especializadas (clérigos e leigos), que saibam exprimir a atenção da Igreja, para com os que se consideram ofendidos por comportamentos impróprios por parte dos clérigos.
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