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Foto do escritorRodrigo Viudes

A HISTÓRIA DE CECÍLIO

Atualizado: 25 de jun. de 2023

Da roça ao altar, a trajetória de vida e de fé do jovem negro, pobre e inculto que esperou por quase três décadas para ser ordenado padre diocesano e hoje celebra o primeiro ano de sua eterna vocação nos altares do céu

Do diaconato para a eternidade: Pe. Davi Cecílio em celebração na Matriz de Garça (SP) | Crédito: Erica Montilha

Era janeiro de 2020. A pandemia do novo coronavírus ainda seria oficialmente declarada no Brasil apenas dois meses depois e as celebrações seguiam sua rotina normal na Paróquia São Pedro Apóstolo, em Garça (SP).

Como de costume, a oração da manhã na casa paroquial reuniu os que ali estavam presentes para agradecer a Deus pelo dia que haveria de ser vencido pela frente, ocupado que seria pelos compromissos do dia a dia.

Enquanto aquele momento de espiritualidade ainda permanecia entre eles, o pároco Anderson Messina Perini fitou seu diácono Cecílio Davi nos olhos e o perguntou, como que se já soubesse a resposta:

“Você ainda deseja ser padre diocesano?”. “Sim, é o meu sonho!”, respondeu aquele que até então mantivera irredutível, por quase três décadas, a esperança de um dia subir ao altar como um padre diocesano.

SEMEADURAS DA VIDA

Tal resiliência por um único propósito Cecílio aprendera ainda na tenra infância, no trabalho rural ao lado da família, na espera pelas safras servidas pelas rubras, férteis e abençoadas de Icaraíma (PR), conforme reza uma das traduções do nome em tupi.

O pai arrendava terras onde plantava soja, milho, algodão, além de outros alimentos para a sobrevivência da família. A mãe cuidava apenas da casa – chegou a ter 14 filhos, do quais seis se foram ainda pequenos.

Mas, sobreveio a geada de 1975. Plantações inteiras foram dizimadas pelo rigoroso frio e muitas terras agora desnudas foram relegadas à criação de gado. A mudança do clima afetou os negócios da família, que precisou partir.

NOVOS CAMPOS

Por conhecer um patrão que também tinha terras em Marília (SP), seo Antonio, pai de Cecílio migrou-se com a mulher, Maria Augusta, e seis dos oito filhos, radicando-se nas terras da Fazenda Figueirinha, hoje ocupada por um bairro homônimo, na zona norte.

Era 1978. Cecílio Davi chegou como irmão mais velho. Atento ao trabalho pesado da lavoura, formou-se tratorista em Vera Cruz (SP). Sua experiência na serralheria também contribuiria para a entrega de outros serviços.

Além do trabalho, o jovem Cecílio Davi se arriscava em outros campos pelo esquadrão do Figueirinha. Jogava à direita dos irmãos. A camisa imitava a do Santos, cujo Rei Pelé, o pai, bauruense, conhecera no extinto BAC.

TEMPO DE VOCAÇÃO

Também a religião se mantivera na rotina da família. Particularmente, na de Cecílio Davi que por tantos anos houvera acompanhado os pais em missas, terços, novenas, e tantas outras celebrações promovidas pela igreja.

Ainda em 1978, ele conheceu uma pequena capela no bairro Castelo Branco servida pelos freis capuchinhos da Paróquia São Miguel Arcanjo, que testemunhou se tornar a Paróquia Sagrada Família, em 1979, entre os primeiros catequistas e vicentinos.

Cecílio Davi iniciou sua trajetória comunitária em Marília como catequista na Paróquia Sagrada Família, em 1979

Congregado mariano, Cecílio Davi percebeu o despertar para a vida religiosa ainda na adolescência. Na primeira metade da década de 1980 conheceu o padre Ângelo Fornari, da Congregação Jesus Sacerdote (CJS).

O sacerdote italiano acompanhava jovens que buscavam o discernimento para a vida sacerdotal através de grupos de espiritualidade mariana e retiros. Cecílio Davi passou a se contar entre eles.

DÉFICIT DE APRENDIZAGEM

À época, Fornari havia sido designado pelo então bispo dom frei Daniel Tomasella (1923-2003) a acompanhar a pastoral diocesana, sobretudo no cuidado com as novas vocações. Por isso, em 1987, o padre indicaria Cecílio Davi ao seminário.

“Percebi a dificuldade que ele tinha nos estudos, mas a providência divina quis que, apesar da limitação intelectual, que pudesse servir na igreja”, afirmou o padre ao blog. “Deus se serve de todos”, frisou.

Em 1989, Cecílio Davi cursava ainda o sexto ano do ensino supletivo. Seminarista mais velho de sua turma, ele mesmo admitiria sua dificuldade de aprendizagem, mas concluiria o antigo Primeiro Grau (atual Ensino Fundamental), em 1991.

Diante deste cenário, a Igreja ficou em um impasse: como rejeitar alguém cuja fé constrange sua discreta intelectualidade? Debateu-se, então, qual seria a melhor solução para este caso singular de vocação.


DIACONATO PERMANENTE

Inicialmente, optou-se por oferecer a Cecílio Davi, dada a sua idade adulta, uma experiência pastoral na companhia de outros padres, a começar por João Carlos Batista, na Paróquia Santo Antonio, em Junqueirópolis (SP).

“Chegamos a propor ao Cecílio se ele não gostaria de ser irmão. Mas, ele foi firme na resposta: disse que queria ser padre”, recordou ao blog o padre Rafael Garcia, reitor do Seminário São Pio X, em 1989, e hoje pároco na Paróquia Maria Mãe da Igreja.

Na prática, Cecílio continuaria em preparação vocacional, embora de um modo particular. “O Cecílio não deixou o seminário. Houve uma situação específica sobre a continuação de seu processo formativo”, afirmou ao blog o padre José Carlos Vicentin, reitor do seminário entre 1990 e 1991.

“Eu continuei dando assistência à sua formação, mesmo depois de ter deixado a reitoria do seminário. E, para os estudos bíblicos ficou encarregado o padre Sidnei de Paula Santos que muito o ajudou”, complementou Vicentin.

Por fim, deliberou-se pela proposta que o manteria no altar, mesmo que ainda padre não fosse: o diaconato permanente, até então inédito na Diocese de Marília, na condição de que permanecesse solteiro e à disposição da Igreja. Cecílio Davi aceitou.

A primeira ordenação clerical do agora ex-seminarista seria realizada em 8 de agosto de 1992 na Paróquia Santa Antonieta, criada havia pouco mais de um ano. Procurada, a comunidade informou não ter registro de imagens da celebração.


PEDIDO FORMAL

Desde então, Cecílio Davi colocou seu diaconato a serviço da Igreja. Foi enviado para as Paróquias de Nossa Senhora Aparecida de Oriente (SP) e Ouro Verde (SP); e Santa Cecília, de Monte Castelo (SP).

Entre 1995 e 2000, residiu na Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe de Marília. “O Cecílio sempre foi uma pessoa alegre e cumpriu seu ministério com fidelidade e muito zelo”, recordou ao blog o então pároco, o monsenhor Achiles Paceli de Oliveira Pinheiro.

Parceria presbiteral: Cecílio Davi e monsenhor Achiles, na Paróquia Guadalupe de Marília (SP), em 1990
Ainda que se mantivesse atento às suas atribuições como diácono, Cecílio Davi não negava o sonho contido do sacerdócio. Em 2013, aproveitou a ‘brecha’ da chegada do novo bispo diocesano para se apresentar formalmente.

Em 8 de novembro, Cecílio Davi levou às mãos de dom Luiz Antonio Cipolini uma breve carta sobre sua caminhada até então na igreja, desde os tempos de seminário, com seu pedido expresso com todas as letras no fim: “Quero ser padre diocesano”.


TENTATIVA FRUSTRADA

Cecílio Davi já residia na Paroquia São Pedro Apostolo em Garça desde 2007. A solicitação ao bispo, aos 61 anos de idade e 21 de diaconato, foi recebida pelo presbitério como um grito contido de um pastor que desejava conduzir suas ovelhas.

Ainda em sua primeira circular de transferências de padres, em 2014, dom Luiz Antonio Cipolini designaria o diácono à Paróquia Senhor Bom Jesus, de Arco-Iris (SP), para que, após um ano fosse “reestudado o seu pedido para ser ordenado presbítero”.

Após período frustrante como diácono, Cecílio Davi voltaria a Arco-Iris como padre, em janeiro de 2022
Cecílio Davi ficaria dois anos em seu ‘estágio probatório’. No entanto, ao final de 2015, retornou para Garça (SP), sem que tivesse atingido seu propósito. À época, confidenciou não ter recebido apoio dos que seriam seus futuros colegas de altar.

O blog procurou o então pároco de Arco-Iris, Jurandir Fernando Noronha, hoje na Paróquia Nossa Senhora das Graças, de Pacaembu (SP) por sua secretaria paroquial, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.


UNANIMIDADE FAVORÁVEL

Uma década depois de seu retorno a Garça (SP), Cecílio Davi receberia como novo pároco o padre Anderson Messina Perini – o mesmo que o havia conhecido, aos 7 anos de idade, ainda naquele primeiro ‘estágio’ em Junqueirópolis (SP).

A rotina do diácono mudou da água para o vinho. Voltou a conduzir com mais frequência a Celebração da Palavra, além de continuar a exercer seu ministério com visitas aos doentes e nas tantas exéquias às quais era requisitado.

A redução do ritmo de trabalho pastoral, sobretudo pela reclusão forçada pela pandemia, providenciou espaço para o diálogo que Cecílio Davi tanto esperava ter, mesmo que o tempo agora parecesse fluir pela terceira idade.

Fraternidade além do altar: Cecílio Davo encontrou no pároco Anderson Perini a mão amiga para o sacerdócio

Recém-chegado ao Conselho de Presbíteros, na qualidade de membro eleito pelos colegas, padre Anderson Perini retomou a antiga questão de Cecílio Davi. Decidiu-se, então, por escutar o clero e fiéis para posterior deliberação.

“Os escrutínios que nos chegaram traziam belos testemunhos sobre o trabalho que Cecílio Davi havia oferecido à igreja”, recordou o padre José Antonio de Sousa (CJS), que também compunha o mesmo colegiado presbiteral na ocasião. “A decisão do conselho foi unânime pelo ‘sim’, por seu testemunho de vida”, frisou.

ENFIM, PADRE

O posicionamento do Conselho de Presbíteros foi declarado oficialmente em 5 de outubro de 2021. Desde então, Cecílio Davi preparou-se para o tão aguardado momento de toda sua caminhada religiosa até ali.

Ainda na última semana de novembro do ano passado, o diácono participaria de um retiro espiritual na CJS, cuja casa o havia acolhido, ainda adolescente, pelo padre Ângelo Fornari, ainda hoje residente por lá, entre idas e vindas da Itália.

Cecílio Davi receberia, enfim, a ordenação de presbítero, 29 anos, quatro meses e dois dias depois da celebração de seu diaconato, pelas mãos de dom Luiz Antonio Cipolini, na Paróquia São Pedro Apóstolo, em Garça (SP).

Em suas breves palavras, Cecílio Davi agradeceu a todos que o ajudaram em sua vocação e ministério, e manifestou, emocionado e grato: “a ordenação presbiteral é o melhor presente que já recebi na vida”.

A mudança de ‘status’ clerical incumbiu Cecílio Davi de atribuições que ele não tinha até então como diácono. Principalmente ouvir às confissões, o que se tornaria uma de suas principais rotinas na paróquia.

“Ele era o mais procurado. Os dois dias em que atendia por semana sempre estavam cheios de pessoas que o procuraram sua sabedoria de vida, ouvir seus conselhos e se consolar diante de seus pecados”, elogiou o pároco, Anderson Perini.

Agora sacerdote, Cecílio Davi aparecia pela primeira vez entre seus colegas de batina no Guia Diocesano de 2022, e não mais ao final da lista, isolado como então único diácono permanente, a exemplo de tantas outras edições.


A PERDA

Aos 67 anos, Cecílio Davi já convivia com algumas dificuldades de saúde. O controle do colesterol era diário há tempos. A leitura pausada tinha a companhia nebulosa de um glaucoma e o coração já havia lhe pregado um susto havia poucos anos.

Em recentes exames de rotina, Cecílio Davi foi orientado a se submeter a uma cirurgia urológica. Mas, havia certo risco, dado seu histórico cardíaco. No entanto, o procedimento foi bem sucedido.

Após cinco dias de internação, o padre obteve alta hospitalar em 21 de novembro. Chegou bem disposto na casa paroquial por volta das 17h30 e recebeu os cuidados próprios para que tivesse o tempo necessário para sua recuperação.

Mas, ao sentar-se para tomar um chá e comer biscoitos no horário do jantar, acusou um mal-estar, que acabou por evoluir para uma parada cardiorrespiratória. O Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU) foi acionado.

Eram 20h30 quando os profissionais da Saúde conseguiram ressuscitar Cecílio Davi e estabilizá-lo a tempo de que pudesse chegar até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) “Dr. Mario Nunes Miran”, em Garça (SP).

O padre seria acometido de mais uma parada cardiorrespiratória durante o atendimento médico e não resistiria. A morte de Cecílio Davi seria declarada oficialmente pela Diocese de Marília em nota de falecimento publicada às 23h34.

O funeral começou às 7 horas do dia seguinte. Acompanhado de muitas coroas de flores, o corpo de Cecílio Davi foi colocado à frente das escadarias que o haviam acabado de recebe-lo, há menos de um ano, como sacerdote.

Precoce despedida: funeral de Cecílio Davi ocorreu menos de um ano após sua ordenação presbiteral
“Esse é o pior momento da vida de um bispo. Enterrar um padre é algo muito difícil”, afirmou dom Luiz Antonio Cipolini, visivelmente emocionado, na missa exequial. O corpo de Cecílio Davi seria sepultado no final daquela tarde no Cemitério Santa Faustina, em Garça (SP).

Neste sábado (10), em que se completa um ano da ordenação sacerdotal do padre Cecílio Davi, haverá um momento de oração dedicado à sua memória na missa a ser celebrada a partir da 19h30, na Matriz de Garça (SP).

Ainda ontem, a foto de perfil da Paróquia São Pedro Apóstolo era ocupada pelo laço negro ao lado do qual se lia ‘luto’. Enquanto isso, no céu onde tanto desejou estar, Cecílio Davi já deve estar celebrando sua eternidade. A prova da salvação é a caridade.

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