CONCESSÃO PELO CANO
- Rodrigo Viudes
- 28 de set.
- 6 min de leitura
ANÁLISE: Decreto de anulação alega “vícios insanáveis”, mas discurso de Vinicius abre brecha para acordo com a RIC. Concessionária exalta obras e descontos, mas não rebate críticas centrais da gestão municipal

A coletiva de imprensa realizada pelo prefeito Vinicius Camarinha (PSDB) na manhã da última quarta-feira (24), no auditório do gabinete municipal, abriu uma nova frente no debate sobre o futuro do saneamento básico em Marília.
Ao anunciar a anulação unilateral do contrato de concessão com a RIC Ambiental, o chefe do Executivo afirmou que a empresa poderá continuar prestando os serviços, desde que se “adeque aos modelos que atendam o interesse público” e que se reveja o valor da outorga paga ao município.

A fala contrasta com o tom do próprio decreto publicado no Diário Oficial do Município de Marília (Domm), que classificou a Concorrência Pública nº 013/2022 e o contrato subsequente como eivados de “vícios insanáveis de ilegalidade”.
O texto cita restrições à competitividade, indícios de direcionamento e prejuízos concretos ao patrimônio municipal. Diante disso, soa contraditório que uma concessionária considerada legalmente inviável possa, por ajustes financeiros, recuperar sua legitimidade junto ao poder público.
RETÓRICA ENCANADA
Essa brecha verbal do prefeito, ausente do texto normativo, sugere duas possíveis leituras: a primeira, de que o decreto pode ter sido usado como instrumento de pressão política para renegociar termos com a RIC Ambiental.
A segunda, de que a atual gestão busca manter a empresa no setor mediante um novo arranjo de outorga, ainda indefinido, mas que se alinhe às pretensões do prefeito.
A interpretação se fortalece pelo fato de o contrato original ter sido assinado pelo antecessor e atual adversário político, Daniel Alonso (PL), abrindo espaço para especulações sobre um jogo de acomodação de interesses entre governo e concessionária.

O momento da decisão também chama atenção. O decreto foi assinado pouco mais de um mês depois que a concessionária reassumiu plenamente a gestão, ao fim da intervenção decretada pela própria Prefeitura entre fevereiro e agosto.
Sob essa ótica, o cancelamento pode ser lido como um ato calculado para forçar a empresa a ceder em novas condições, em vez de encerrar de forma definitiva a concessão.
DINHEIRO PELO RALO
Outro ponto crítico está na indenização prevista no decreto. Embora não haja definição de valores, é certo que a questão será judicializada pela concessionária. A conta pode comprometer a receita líquida que o município teria com a outorga.
No caso, seja mantendo a RIC Ambiental ou transferindo a peração a uma nova empresa. Os prazos de eventual nova licitação, os recursos de concorrentes e as disputas judiciais podem empurrar o efetivo ingresso de valores para a metade final do mandato de Vinícius, na melhor das hipóteses.

CAVALETE INVERTIDO
Ainda na coletiva, o prefeito acenou com a hipótese de reassumir os serviços. Mas esse caminho esbarra em um problema estrutural: a extinção do Departamento de Água e Esgoto de Marília (Daem, autarquia que por 58 anos geriu serviços de água e esgoto em Marília.
Sem a receita do setor e com os servidores realocados na folha da Prefeitura, a administração municipal teria dificuldades imediatas para retomar a operação sem criar nova estrutura de gestão do saneamento básico.

A anulação da concessão, apresentada como uma medida de defesa do interesse público, abre mais perguntas do que respostas. O discurso de Vinicius sugere que o futuro do saneamento em Marília pode estar menos em ruptura e mais em continuidades.
TARIFA DE NARRATIVA
A reação da RIC Ambiental ao decreto do prefeito Vinicius seguiu o manual das concessionárias que se veem diante da perda de um contrato bilionário: a reafirmação de compromissos, a defesa de investimentos realizados e a crítica indireta à gestão pública.
A nota divulgada ainda na quarta-feira (24) pela RIC buscou transmitir a ideia de responsabilidade, ao mesmo tempo em que reforçou o discurso da segurança jurídica e da legitimidade do processo licitatório.
Segundo a empresa, a concorrência nº 013/2022 transcorreu com regras claras e acompanhamento do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP). A versão, porém, confronta o teor do decreto.

A decisão de Vinicius detalhou supostos vícios na definição do critério de julgamento, restrições à competitividade e a aprovação de uma proposta considerada antieconômica para o município.
Chama atenção que, embora outras empresas tenham manifestado interesse na concessão, a RIC acabou sendo a única concorrente habilitada no certame — um ponto crítico diante das suspeitas de direcionamento.
POÇO NO FUNDO
Outro aspecto central da nota foi a apresentação de investimentos estruturais. A empresa elencou poços perfurados, reservatórios recuperados e obras em andamento como prova de compromisso com Marília.
Esses dados, no entanto, não afastam a desproporção já apontada por técnicos da FIA e pela própria Prefeitura: os valores previstos no contrato (R$ 214 milhões para água e R$ 208 milhões para esgoto) ficaram muito abaixo das estimativas originais do edital (R$ 795 milhões e R$ 1,6 bilhão, respectivamente).
A discrepância não se explica apenas por gestão eficiente ou novas tecnologias, mas sugere subdimensionamento do investimento, acomodado pela conveniência da exclusividade da participação no processo licitatório.
COFRE NA SECA
Os valores da outorga também permanecem no centro da controvérsia. A empresa lembra o pagamento mensal de R$ 2 milhões ao município e de R$ 150 mil à Agência Municipal de Água e Esgoto (Amae), sua própria fiscalizadora.
Por outro lado, o decreto municipal cita os compromissos financeiros assumidos pelo município, a começar pela folha de pagamento dos servidores remanescentes do Daem, de R$ 1,9 milhão.
O documento cita ainda dívida de R$ 50 milhões de energia elétrica deixada pela antiga autarquia. As despesas foram mantidas na conta da Prefeitura no texto da Lei Complementar que autorizou a concessão.
O decreto ainda destacou que, em comparação com outras cidades de porte semelhante, Marília recebe um valor muito inferior por habitante — R$ 670,00, contra R$ 2.434,00 em Ourinhos e R$ 2.643,00 em Olímpia.

Além disso, enquanto a concessionária arrecada integralmente a receita tarifária, o município mantém despesas herdadas do antigo Daem, como folha de servidores e dívidas históricas, sem contrapartida suficiente da outorga.
TARIFAS N’ÁGUA
A nota ainda buscou respaldo em reduções tarifárias: queda de 9,1% nos valores cobrados da população. O dado é relevante para o consumidor final, mas não altera a discussão principal sobre a viabilidade e a vantagem econômica da concessão.
Conforme apresentou o relatório técnico produzido para a Prefeitura de Marília pela empresa contratada com recursos municipais, a operação gera prejuízo líquido ao município, independentemente da tarifa aplicada.

HIDRATAÇÃO POLÍTICA
Outro elemento levantado pela concessionária foi a acusação velada de isolamento político. A RIC alega que nunca foi chamada para dialogar durante a intervenção municipal, reforçando a narrativa de vítima de uma gestão intransigente.
A entrevista de Reinaldo Pavarini, diretor da Replan, publicada pelo Marília Notícia, segue essa mesma linha: a de que a empresa foi alvo de decisões unilaterais e que o contrato é sólido e juridicamente defensável.
O discurso, no entanto, contrasta com o fato de a concessionária ter sido formalmente notificada durante o processo administrativo e ter apresentado defesa, embora as alegações tenham sido consideradas insuficientes pela comissão processante.

No pano de fundo, permanece a questão política: a concessão foi assinada por Daniel Alonso (PL) a menos de quatro meses do fim de seu segundo mandato, após dois anos de impasses judiciais.
Na entrevista, Pavarini afirma: “não há pecados ter relação com prefeitos”. Quem diz é o diretor de uma empresa que presta serviços há mais cinco décadas à Prefeitura de Marília. “Sempre ajudei prefeitos, são eles que lideram a cidade”, declarou.
Pavarini se refere aos governos de Pedro Sola (1973-1977), Theobaldo de Oliveira Lyrio (1977-1983), Abelardo Camarinha (1983-1988, 1997-2004), Domingos Alcalde (1989-1992), Salomão Aukar (1993-1996), Mário Bulgareli (2005-2012), Ticiano Tóffoli (2012), Daniel Alonso (2017-2024) e Vinicius Camarinha (2013-2016 e atual).
É neste contexto de "relacionamento", segundo qualificou o próprio Pavarini, que serão canalizados os desdobramentos do decreto de anulação da concessão pública do saneamento básico de Marília, com interligação verbal do prefeito preparada para continuidade.
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