Padres da Diocese de Assis são acusados de abuso de menor e suposta tentativa de suborno por ex-seminarista. Escândalos semelhantes já provocaram reforma de código e endurecimento de penas contra clérigos e até leigos. Maioria das cúrias diocesanas da região ainda ignora formalização de ‘guichê’ para apresentação de denúncias de crimes sexuais contra vulneráveis
“Acordei com o padre (...) ofegante, forçando seu corpo sobre o meu (eu estava de bruços), forçando minha cabeça contra o travesseiro com um dos braços, tapando minha boca com a mão e com a outra abaixando minha cueca e logo depois me penetrando com voracidade”.
“Ao entrar, ele já foi me conduzindo com falas suaves, me dando um beijo e quando me dei conta estava na cama com ele. O meu mentor que me mostraria o que era a vida sexual saudável”.
Os relatos acima, que poderiam muito bem ser confundidos com a desnuda obra de Nelson Rodrigues (1912-1980), constam em uma peça assinada justamente por clérigos – logo eles, alvos e críticos do ‘anjo pornográfico’ da dramaturgia brasileira.
No caso, uma ‘declaração do denunciando vítima’, pela qual um ex-seminarista acusa dois padres da Diocese de Assis (SP) por “abuso sexual de menor”. Este blog recebeu cópia. A identidade dos envolvidos será preservada por se tratar de acusação sob investigação – inclusive, pela igreja.
AS DENÚNCIAS
Formalizada em 8 de janeiro de 2021 no Tribunal Interdiocesano de Botucatu, sediado em Assis (SP), a denúncia se refere a fatos que teriam ocorrido entre outubro de 2002 e o primeiro semestre de 2003.
À época, diz o denunciante, ele havia acabado de ingressar no seminário e já acompanhava os padres em diversas celebrações. Os supostos crimes teriam acontecido durante suas estadias em casas paroquiais.
Em depoimento, o ex-seminarista disse ter sido atraído pelo suposto primeiro padre abusador por sua “maior abertura de pastoral” – na prática, a permissão ao uso de camisa clerical e da proclamação do Evangelho nas missas.
Quanto ao outro, disse tê-lo procurado para uma “direção espiritual” com sacramento da confissão que acabaria na cama.
“Hoje, mais maduro, sei que eu era nada menos, nada mais, que o seu brinquedo sexual, fazendo uso do respeito e do carinho que tinha por ele”, declarou na denúncia.
VERGONHA
Procurado pelo blog, o ex-seminarista confirmou todas as denúncias formalizadas ao tribunal eclesiástico. E argumentou porque demorou quase duas décadas para fazê-las, a tempo de que suas acusações fossem tragadas pela prescrição.
“Foram muitos anos de vergonha por tudo que me aconteceu. Mas chegou um momento em que decidi falar para que seja feita justiça por tudo o que me aconteceu. Eu não poderia mais ficar calado”, afirmou.
Em virtude dos abusos que afirmou ter sofrido, o ex-seminarista diz ter recorrido a terapias e a tratamento psiquiátrico para superar os traumas. “Quase me suicidei, por várias vezes. Tomo remédios para controlar minha depressão”.
Atualmente casado, o outrora garoto que um diz ter desejado ser padre diz ter encontrado no matrimônio a força que tem precisado para conduzir sua vida. “Vou seguindo um dia de cada vez, na esperança de dias melhores”.
SUPOSTA TENTATIVA DE SUBORNO
Além da formalização da denúncia, o blog teve acesso ainda a um áudio em que o ex-seminarista denunciante acusa um dos padres que o teria abusado sexualmente de suposta tentativa de suborno.
Pelos motivos já expostos neste post, o arquivo não será divulgado. Trata-se da gravação de um telefonema de retorno feito ao denunciante. A duração é de 26min4s. O tratamento entre ambos é cordial, apesar da gravidade da denúncia.
Ainda no início da conversa, o padre sugere um encontro pessoal – negado pelo ex-seminarista – para “tentar fazer alguma proposta concreta”. “A iniciativa da conversa era ver se eu tinha como ajuda-lo a não sofrer mais”, diz o padre.
Em nenhum momento da gravação o acusado questiona ou nega a denúncia apresentada pelo ex-seminarista. “Para mim foi uma tentativa velada de tentar oferecer algum dinheiro para me calar”, desabafou o denunciante.
PALAVRA DOS ACUSADOS
O blog procurou os padres denunciados. Ambos retornaram. Um afirmou desconhecer as acusações. Questionado sobre o áudio, no entanto, disse entender não ter havido nenhuma tentativa de suborno.
Quanto ao outro, justificou seu silêncio diante das acusações por estar “sob sigilo” por conta da investigação iniciada pela igreja, ainda em 2021. O blog apurou que os acusados e as testemunhas do denunciante já foram ouvidos pelo tribunal.
Juntadas as oitivas, o processo tramita desde então no Vaticano. A decisão pode ser divulgada a qualquer tempo – nos próximos dias ou meses. Enquanto isso, os padres seguem suas rotinas paroquiais normalmente. Procurada, a Diocese de Assis não se manifestou.
ESCÂNDALOS E PENAS
Os abusos de padres contra seminaristas (adultos ou menores) e crianças estão no centro dos principais escândalos da Igreja Católica revelados nas últimas décadas por milhares de vítimas – sobretudo através da imprensa.
Destacam-se, entre tantos, as revelações de acobertamento de abuso por bispos e padres na Alemanha, na Áustria, na Austrália, na Bélgica, no Brasil, no Chile, nos Estados Unidos, na França, no México e na Polônia.
Diante da verdade da cumplicidade dos crimes cometidos por seus clérigos, restou à Igreja Católica o ônus do pagamento de indenizações bilionárias, a punição tardia até de cardeais e uma rara reforma em seu Código de Direito Canônico (CDC).
As alterações foram anunciadas em junho de 2021 pelo Papa Francisco. As principais são a inclusão de pedofilia, da pornografia infantil e a equiparação deste crime ao abuso provocado por clérigos por sua posição de poder (padres contra seminaristas, por exemplo).
Também os leigos responsáveis por instituições ou movimentos religiosos passaram a ser alcançados pelo CDC. A previsão de ‘penas justas’ podem chegar à demissão clerical e à excomunhão.
POUCOS ‘GUICHÊS’
Ainda em maio de 2019, o papa havia publicado a Carta Apostólica ‘Vos Estis Lux Mundi’ (Vós Sois a Luz do Mundo, em latim), na qual instituiu novas normas para o atendimento de vítimas de crimes sexuais provocados por cardeais, bispos, padres, diáconos e seminaristas.
Entre as determinações de Francisco, constava a instituição de sistemas que facilitem ao público em geral o recebimento de eventuais denúncias, a serem instaladas por cada uma das dioceses e eparquias espalhadas pelo mundo.
Não é bem o que acontece na Arquidiocese de Botucatu, pela qual são sufragâneas oito dioceses – além da de Marília, também as de Assis, Araçatuba, Bauru, Lins, Ourinhos e Presidente Prudente.
Apenas três delas – Botucatu, Lins e Marília – dispunham de canais específicos para esta demanda, com acessos disponíveis em seus sites até a data de publicação deste post. O blog não identificou nenhum link ou contato nos endereços eletrônicos das demais.
A Arquidiocese de Botucatu disponibiliza um formulário para apresentação de denúncias e envio de arquivos digitais na página da Comissão Arquidiocesana de Tutela de Menores e Vulneráveis.
Na Diocese de Marília, o denunciante precisa passar o mouse ou clicar em ‘diocese’, no menu, para ter acesso à Comissão Diocesana para Tutela de Menores e Pessoas em Situação de Vulnerabilidade, suas atribuições, seus membros, documentos e contatos.
Apenas no site da Diocese de Lins há um link direto no menu de ‘denúncia’. Quem clica é encaminhado(a) à Proteção de menores e pessoas em situação de vulnerabilidade. O único contato é um e-mail.
Foi este o caminho, aliás, que este blog utilizou para entrar em contato com todas as dioceses citadas – exceto Marília. Nenhuma havia respondido até a publicação deste post.
Perplexa!
O duro é o silêncio das mídias da nossa cidade.
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Que se faça Justiça!