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SAUDADE: A NECRÓPOLE DOS VIVOS

Entre muros que separam biografias, o maior cemitério de Marília abriga imortais de mármore e anônimos sem nome, histórias e ruínas. Um passeio onde a cidade repousa — e a vida insiste em não acabar


Cemitério da Saudade: entre corpos e imortais, mais de 100 mil | Foto: Alcyr Netto/Gemini
Cemitério da Saudade: entre corpos e imortais, mais de 100 mil | Foto: Alcyr Netto/Gemini

Sábado, 1º de novembro. Véspera de feriado. Os visitantes reaparecem sob o pórtico da entrada principal. Chegam às centenas – apesar da chuva –, e se espalham pelas vias laterais. Sobram vagas de hotelaria. Não há reservas.

A estadia, por enquanto, é breve. Há quem traga luz; outros, flores. Uma senhora de balde na mão ajuda na faxina. A casa é dela. Ao lado, um casal dialoga com um vizinho de longa data. O morador chegou em 1966. E não morreu.

Há décadas, o homem de bigode na fotografia embaçada recepciona quem cruza os limites entre a vida e a morte. Prossiga em frente – e seja bem-vindo à Saudade: a necrópole dos vivos de Marília.


Dia de visita: futuros moradores da Saudade passam algum tempo entre a vida e a eternidade
Dia de visita: futuros moradores da Saudade passam algum tempo entre a vida e a eternidade

 

PARTE 1: O CEMITÉRIO

 

Fincado em planos altos, à beira da zona oeste, o lugar derradeiro onde se baixam os corpos nasceu com a cidade que o circunda, em 1929. A divisória com o outro mundo é baixa, murada em tons celestes.


Pelo lado de dentro da existência: túmulo de pioneiro de nome ilegível; ao fundo, o muro da fachada
Pelo lado de dentro da existência: túmulo de pioneiro de nome ilegível; ao fundo, o muro da fachada
No perímetro interno do maior cemitério de Marília repousam cerca de 100 mil almas – ou corpos. Ou seja, quase metade da população de entorno, de 247.348 ainda vivos, segundo estimativa para 2025 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A mudança de endereço — do lado de fora para dentro dos muros — ocorre, em média, quatro vezes por dia, segundo a Empresa Municipal de Mobilidade Urbana (Emdurb), responsável pela administração do cemitério.


À espera dos próximos: portões da Saudade recebem média de 4 moradores por dia | Foto: Alcyr Netto
À espera dos próximos: portões da Saudade recebem média de 4 moradores por dia | Foto: Alcyr Netto

Apenas em 2025, o campo santo já havia recebido 1.854 novos residentes até a data de publicação deste texto, de acordo com dados disponíveis no Portal da Transparência do Registro Civil.

 

ÁREA NOBRE

A maior necrópole de Marília é um retrato vivo da divisão social que a circunda. Há o setor onde sepultam os ricos, as diferentes oportunidades de moradia reservadas à classe média e o espaço destinado a quem não tem onde cair morto.

A maior concentração de entes queridos, medida pelo PIB de Marília, está na via principal do Cemitério da Saudade — uma Sampaio Vidal, que o corta quase ao meio: do abastado leste ao popular e velho oeste.
Ala dos mausoléus: família tradicionais de Marília dividem mesmo espaço nobre até na morte
Ala dos mausoléus: família tradicionais de Marília dividem mesmo espaço nobre até na morte

Na passarela dos mausoléus revestidos em mármore descansam os antepassados de famílias tradicionais – Montolar, Butara, Barion, Garla, Almeida, entre outras – conhecidas por empresas e serviços que seguem vivos no cotidiano de Marília

 

CENTRO VELHO

A ‘via rica’ do Cemitério da Saudade se expandiu à medida que novas áreas foram desapropriadas pela Prefeitura. O crescimento seguiu no sentido da avenida da Saudade até o fundo, já vizinho à Rodovia do Contorno.

As quadras mais antigas, junto à entrada principal, guardam as sepulturas pioneiras — um traçado que espelha os primeiros bairros de Marília, onde a necrópole imobiliária ainda pulsa no coração da cidade.

Tal como os imóveis esquecidos pelos vivos em áreas comerciais, as casas dos mortos também cedem ao tempo, abandonados na antiga ala do Cemitério da Saudade, onde repousam cerca de 60% das mais de 24 mil lápides ativas.


Necrópole urbana: imóveis abandonados no centro replicam linhas mórbidas de uma cidade moribumba
Necrópole urbana: imóveis abandonados no centro replicam linhas mórbidas de uma cidade moribumba
Restos de sepultura: necrópole convive com centenas de áreas habitadas pelo abandono dos vivos
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‘CDHU’ DA MORTE

Enquanto os primeiros sepultados desfrutam da longevidade de uso do campo santo, os últimos permanecem como se vivos estivessem: ainda últimos, relegados ao fundo — na periferia das prioridades dos defuntos.

A vida sobreposta entre lajes impõe o confinamento na finitude. Menos de sete palmos separam um andar do outro no edifício pálido dos corpos pobres. Há mais números que nomes. Um CDHU da morte.


Nem sete palmos para morrer: 'predinhos da Saudade' empilham pobres cadáveres fadados aos ossários
Nem sete palmos para morrer: 'predinhos da Saudade' empilham pobres cadáveres fadados aos ossários
A moradia, ainda que precária, não é eterna: custa R$ 1.055,81 por três anos. Depois disso, os restos, surrados pelo tempo, têm a sina da decomposição da dignidade — o limbo do ossário dos desvalidos.

 

LOTEAMENTO

No entorno da pobreza, sepulcros revestidos de azulejos, fotos, cruzes e flores se enfileiram no horizonte fúnebre da necrópole. Cabeceiras elevadas repousam sobre hastes inclinadas, lembrando telhados de duas águas. Sepulturas populares.


Núcleo habitacional: classe média repete na morte mesma arquitetura residencial sob a qual sobrevive
Núcleo habitacional: classe média repete na morte mesma arquitetura residencial sob a qual sobrevive
Na ala antiga, tais moradias de três cômodos custam o preço da morte. Hoje, paga-se R$ 14.913,88 por década de hospedagem. Em caso de inadimplência, o inquilino corre o risco de despejo – a exumação.

Pelo mesmo prazo, o futuro morador pode pagar menos da metade – R$ 6.158,28, no caso – para viver no loteamento da Saudade, com direito à dupla companhia, privacidade de lápide e ao gramado suspenso sobre casa eterna – enquanto seja paga.


Condomínio póstumo: loteamento com direito a privacidade, companhia e gramado suspenso
Condomínio póstumo: loteamento com direito a privacidade, companhia e gramado suspenso

PARTE 2: OS VIVOS

 

A população da Saudade é habitada por gente de biografia viva. Pessoas que se encontram pelo nome, pela história, por legados e fachadas, pelo CEP – fadadas à memória no campo da existência, assentadas nas terras da eternidade de Marília.

Por avenidas e vielas, cruzam-se prefeitos, vices, secretários; empresários, liberais, acadêmicos, religiosos, ‘foras da lei’ e toda uma urbe de anônimos, hoje relegados à memória líquida e digital dos seus.

Entre os pioneiros da quadra zero, vizinhos ao muro frontal do cemitério, o médico Hilário Maldonado, que ali chegou em 2013, soma tantos atendimentos quanto ossos sob a guarda municipal – de que fora referência em sua ortopedia vocacional.



De frente para a necrópole, do alto da capela da qual é o próprio padroeiro, monsenhor Bicudo a todos observa desde 1960 – menos de um ano antes de ser alçado a patrono do Instituto de Educação de Marília, hoje escola estadual.


Padroeiro do próprio túmulo: Monsenhor Bicudo tem privilegiada vista de cima desde 1960
Padroeiro do próprio túmulo: Monsenhor Bicudo tem privilegiada vista de cima desde 1960

ALTARES PÓSTUMOS

As ‘igrejas particulares’, erigidas sobre as lápides, somam-se às centenas. Cada família com seus entes elevados aos próprios altares, canonizados pela crença popular na proximidade a Deus através da representação de espaços sagrados.

Dentre os ‘santos do povo’, encontra-se um contumaz pecador ao Sétimo Mandamento. Guaraci Marques Pinto, o ‘Pé de Veludo’, morto pela polícia em 1964. Na auréola de sua capela, placas de graças alcanças adornam a devoção aos ‘milagres’ de um ladrão.

Na capela São Afonso, a historiadora Rosalina Tanuri escreveu, em junho, novo capítulo a “Marilia, chão do nosso amor”, de volta à terra que escolheu para contar seus feitos e fatos – com direito a foto emoldurada.

Noutros templos, a fé na zeladoria é morta. Uma criança japonesa sorri num banner fixado ao fundo do quarto fúnebre. Arrombaram a porta. Próximo dali, o desprezo à conservação enfileira a memória religiosa em ruínas.


Sacralidade perdida: capelas enfileiram abandono à memória religiosa e arquitetônica da Saudade
Sacralidade perdida: capelas enfileiram abandono à memória religiosa e arquitetônica da Saudade

 ARQUITETURA VIVA

Forjado por décadas pela economia pulsante da cidade, o engenheiro José Antonio Lourenço dos Santos está em obra presente em prédios para negócios – Rio Branco Center, Nações Unidas – eventos corporativos – Sun Valley Marilia by Atlantica.



No estádio municipal Bento de Abreu Sampaio Vidal, o ‘Abreuzão’, as reformas pré-pandemia de 2020 mantêm as linhas arquitetônicas de Paulo Amado – hoje em lugar cativo na Saudade após derrota para Covid-19.

No campo das artes, Braz Alécio ganhou ainda mais projeção após décadas de exposições, alçado à denominação de um complexo cultural que ainda hoje abriga o legado cinéfilo de Benedito André e Roberto Caetano Cimino.

 

OBRAS PERPÉTUAS

Na quadra ao lado – da cidade além-muros da Saudade – repousa o Paço Municipal por onde passaram alguns ilustres moradores da cidade de lápides. Cada qual, com suas obras, por ora perpétuas, até segunda gestão.

A extensão do centro por vias sinuosas – porém expressas – até a zona sul, e vice-versa, foi a passagem mais duradoura deixada por Theobaldo de Oliveira Lyrio, primeiro prefeito mariliense (1977–1983).

Pedro Sola mudou de lado – do muro, no caso – no tempo em que quis. Imprevisível como sempre, despediu-se da cronologia e instalou-se em seu próprio espaço, onde mantém expediente desde 1978.

Entre os nobres edis, o plenário da Saudade também ampliou seus três assentos em 2025 com José Carlos de Almeida e os decanos Mário Coraíni Junior e Aldo Pedro Conelian. Ivan Negão ocupou seu lugar antes do previsto.

Representantes de diferentes legislaturas mantêm seus gabinetes perpétuos em quadras identificadas apenas por números. Algum vereador que se ache mais vivo que os demais pode levantar a oportunidade política – desde que os escolhidos já estejam no além do alcance legal.

 

VIDAS QUE SEGUEM

Apesar da Saudade, há aqueles que decidiram permanecer ainda mais um tempo do lado de cá, determinados a continuar vivos – e a multiplicar vidas – enquanto descansam na justa memória dos altruístas.

Que o digam os receptores da esperança, sobreviventes pela doação de órgãos e tecidos. Após sete anos de hemodiálise, Mário Aragão só pôde voltar a saborear a refrescância de um simples copo d’água após receber um rim de Bárbara Guedes.

Corações, córneas, fígados, pulmões, tendões e ossos perpetuaram as existências de Isabela Santos Vieira, Rhuan Peloso e Ashla Rosa Lorieto por mais algum tempo, pulsando dezenas de trajetórias de vida.

É fim de tarde e os visitantes partem. Muitos voltarão para ficar. Haverá quem continue a caminhar por entre os muros que separam a necrópole dos vivos e o Cemitério da Saudade. A eternidade não tem hora, nem lugar.

 
 
 

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