As últimas 57 horas de vida da servidora pública municipal e ativista da causa das crianças autistas que gravou em vídeo a própria agonia à beira da morte na UPA da Zona Norte. Confira reportagem especial no Blog do Rodrigo

Terça feira, sete de janeiro, são sete horas da noite. A servidora pública municipal, Josiane Gomes Pelegrin Dias, está de volta à oficina mecânica para consertar o Logan que lhe garante alguma renda extra como motorista de aplicativo.
Ela está pálida, com as mãos frias e o peito apertado. A dor irradia para os braços. Na véspera, mal-estar semelhante havia interrompido a retomada das caminhadas com o propósito de um novo estilo de vida saudável.
A dor piora. Josi Dias decide, enfim, buscar ajuda médica. O posto de atendimento mais próximo é a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), a menos de dois quilômetros dali, no Santa Antonieta, zona norte, na periferia.
É para lá que ela segue, acompanhada apenas pela filha, na direção oferecida pelo amigo mecânico, no que seria a sua última corrida pelas vias tortuosas do atendimento público de urgência e emergência de Marília.

VIDA ATÍPICA
Josi Dias é mãe atípica e solo de três filhos. Dois deles, especiais. A mais velha, de 16 anos, diagnosticada com esquizofrenia. O do meio, com 12 completados na segunda-feira (13), é autista. O caçula tem oito anos.
É por eles que ela dobra a jornada de trabalho, madrugada adentro, e se torna uma ativista dedicada à causa das crianças com necessidades especiais. “Não tenho tempo para revoltas, mas para a luta”, repete, em suas redes sociais.
A imersão na busca por direitos a arrasta para disputas políticas, sindicais e jurídicas. Na primeira, arrisca-se como candidata a vereadora nas eleições municipais de 2024 pelo Republicanos. Consegue apenas 62 votos.

Embora derrotada nas urnas, Josi Dias mantém-se presente como uma das raras testemunhas nas sessões camarárias de Marília. Sindicalizada, conta-se entre os poucos servidores mobilizados por melhores condições de trabalho.
Servidora de carreira desde 2011, Josi Dias recorre ao judiciário contra o remanejamento de posto de trabalho em unidade escolar por determinação da gestão municipal. A Justiça de Marília dá ganho de causa à prefeitura.
Por isso, os dias da servidora tornam-se ainda mais distantes e penosos, embora beneficiada por jornada parcial de trabalho, enquanto cruza a cidade para servir à rotina médica e escolar dos filhos, ao trabalho e às causas que a vida lhe incumbiu de defender.
QUEDAS NA UPA
Josi Dias chega à UPA em menos de dez minutos. Para o carro e tenta subir a rampa de acesso à entrada da unidade. As vistas escurecem e ela cai. Ainda inconsciente, é carregada às pressas para dentro da unidade.
O ex-marido João Carlos da Silva Serra é avisado e vai à UPA. Ele mora por perto. É o primeiro a falar com um médico para saber do estado de saúde de Josi Dias. “De início, falaram que poderia ser ansiedade”, diz ao blog.
Ainda na UPA, João é informado que a ex-mulher seria submetida a exames. Ele trabalha como vigia noturno e precisa ir embora. Acompanhada pela filha, Josi Dias fica na área mista e lotada de atendimento.

A madrugada vem. São 4h51 de oito de janeiro. É quarta-feira. A garota avisa o amigo mecânico pelo WhatsApp: “Minha mãe vai fazer exames de novo”. Josi Dias chega a cogitar ir embora, preocupada com os outros dois filhos, mas o mal-estar persiste.
São 5h11 e a servidora atualiza o ‘status’ dos últimos exames a um contato pelo aplicativo: “Deu alterado”. O ex-marido volta a visitá-la pela manhã. “Ela estava ofegante, com a voz mais fraca”, lembra.

A servidora passa o dia sem perceber nenhuma melhora. Agora apenas com o celular por companhia, responde quando pode as mensagens que se acumulam. “Não quero ser pessimista não. Mas, de verdade, acho que estou de saída”, escreve a uma amiga.
Josi Dias se referia à possibilidade de morrer. O médico da vez na UPA, à porta de saída mesmo, para a rua. São 19 horas e a servidora recebe alta. Ao tentar se levantar ela cai de novo. A anamnese da saúde pública agora recua à medicina da conveniência: “fingimento”.
Josi Dias é transferida para uma sala onde fica isolada dos demais pacientes. Às 21h30, o ex-marido retorna e a encontra inchada. Desta vez, ele escuta do médico de plantão que “o problema dela era de depressão”.
A doença mental é grave àquela altura da vida de Josi Dias. E atestada, por avaliação médica, para fins de afastamento de trabalho por dez dias, em consulta de 12 de dezembro de 2024, na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Planalto, na zona sul.

A servidora continua a sentir dores do peito, fraqueza e, após a despedida ao ex-marido, agora se vê cercada pela solidão, olhando a janela aberta à sua frente, à espera de quem lhe oferecesse algum atendimento.
AGONIA EM VÍDEOS
É meia-noite e seis de quinta-feira, nove de janeiro. Josi Dias recorre novamente ao celular. Desta vez, ela começa a registrar, em vídeo, a situação em que se encontra. São dez gravações em sequência até meia-noite e 23 minutos.
Com a voz fraca, a servidora encontra forças para um “desabafo” sobre o atendimento recebido desde o momento em que chegou à UPA da zona norte até aquela situação em que fora deixada em um quarto de isolamento.
Em um dos vídeos, Josi Dias denuncia ter sido pisada por um funcionário enquanto recobrava a consciência, ainda deitada e deixada no chão da sala mista de atendimento da UPA, sob o juízo da indiferença clínica.

A servidora municipal remanejada pelo novo Plano de Carreira à cozinha e higienização do patrimônio público recebe como retribuição aos seus serviços a sujeira impregnada do atendimento médico de saúde, enfezado em suas próprias pernas.
Não há muito tempo para pudor. A servidora exibe-se como está e compartilha os vídeos pelo WhatsApp. São as últimas imagens públicas dela viva. Às 4h10, após 57 horas de agonia, Josi Dias é declarada morta na UPA da Zona Norte de Marília.
CAUSAS DA MORTE
Da sala onde passou as últimas horas de vida, o corpo de Josi Dias é levado ao necrotério da UPA. E ali permanece, em cima de uma maca, do jeito em que havia sido retirado – ainda sujo, defecado, conforme a servidora havia exposto, em vídeo.
O blog apura com fontes ouvidas na condição de anonimato que o corpo apresentava tonalidade azulada na região do peito e do pescoço, semelhante ao de mortes provocadas por infarto agudo do miocárdio.
A família residente em Pirajuí (SP) é comunicada às cinco horas da madrugada do falecimento de Josi Dias. Os 86 quilômetros da viagem duram uma eternidade. A mãe, dona Rosa Dias, de 70 anos, vem a Marília.
O médico que havia chegado após a troca de turno recebe a família. Fala em morte por broncoaspiração do próprio vômito. A certidão de óbito é lavrada cinco dias depois em Marília com causa múltipla: “insuficiência respiratória aguda, broncoaspiração e obesidade”. Veja abaixo:

O corpo é levado da UPA para Lins (SP), onde é preparado para ser velado a partir das 14 horas do mesmo dia na sala 2 do velório de Pirajuí (SP). Às 10 horas da sexta-feira (10), após 41 anos de vida, Josi Dias desce à sepultura, onde agora jaz ao lado do pai.
VAI-E-VEM DE APURAÇÕES
A morte da servidora-ativista é noticiada pelas redes sociais. No Instagram, o perfil de uma mãe atípica informa a perda da colega que “lutava como uma leoa” pela causa e cobra providências de autoridades municipais.
Marcada no post, a secretária municipal de Saúde, Paloma Libânio, responde: “Meus sentimentos, vamos verificar tudo”. Procurada pelo blog, ela solicita que se busque informações com a assessoria de imprensa municipal.

A direção da UPA responde primeiro, às 19h19 da sexta-feira (10). Expressa suas condolências e afirma que Josi Dias recebeu “todos os esforços cabíveis e procedimentos para estabilizar seu quadro clínico”.
A prefeitura posiciona-se às 20h01. Inicialmente, se solidariza com a morte da servidora e diz que “diante da denúncia de possível negligência médica na UPA, vai instaurar processo administrativo para averiguar o ocorrido”.

Às 20h40, no entanto, a Prefeitura de Marília muda sua própria versão. Diz ter solicitado informações à gestora da UPA, a Associação Hospital Beneficente Unimar (ABHU) e sido comunicada sobre a instauração de procedimento para investigar o caso.
Embora complemente na nova nota que “a Secretaria da Saúde acompanhará e tomará as providências necessárias”, a Prefeitura de Marília relega à sua terceirizada a incumbência de investigar a si mesmo.
A ABHU responde novamente ao blog na quinta-feira (15), por e-mail. Desta vez, confirma a instauração de “procedimento interno para apuração dos fatos relatados pela família da paciente à imprensa” e que “todas as medidas estão sendo tomadas para a garantia do esclarecimento do ocorrido”.

Na mesma nota, a gestora da UPA da Zona Norte “reafirma o compromisso com a excelência no atendimento” e diz que se seus “protocolos seguem rigorosamente as diretrizes estabelecidas pelo Ministério da Saúde”.
A ABHU não explica, no entanto, quais critérios Josi Dias não teria atendido, conforme ela diz em um dos vídeos, para não ter sido encaminhada para atendimento cardiológico na Santa Casa de Marília pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
PRESSÃO DA MÍDIA
A morte de Josi Dias começa a repercutir na imprensa no sábado (11). O portal Giro Marília enfoca a indignação de amigos pela perda da servidora. Na segunda-feira (13), o caso é assunto da edição matinal do jornalístico ‘Fala Cidade’ das rádios Clube/Itaipu.
O apresentador, Amarildo de Oliveira, cobra providências à Prefeitura de Marília. O repórter Fernando Garcia, produz reportagem também para o ‘Balanço Geral’, jornal de meio-dia da TV Record Paulista.
O caso segue na pauta da rádio na terça-feira (14). Desta vez, Vinicius responde. Diz estar “muito triste” e ter determinado à secretaria de Saúde que “instaure um procedimento independente para também acompanhar esse caso”.
A ordem declarada é repetida à família de Josi Dias na tarde do mesmo dia, em reunião a portas fechadas no gabinete municipal. A mãe, a prima e o esposo dela são recebidos com condolências e abraços pelo prefeito.

Dona Rosa cobra posicionamento do município no caso. “Onde se viu a própria faculdade (sic) fazer o julgamento? É uma terceirizada. Quero explicação do Camarinha, do senhor prefeito, da secretaria da Saúde”, frisa. “Vou acompanhar isso bem de perto”.
Apesar do anúncio na terça-feira (14), a Corregedoria Geral do Município publica apenas na sexta-feira (17) portaria para instauração de procedimento de sindicância para “apurar eventuais falhas na prestação dos serviços públicos contratados”.
No caso, da ABHU, “por meio de contrato de gestão” que “eventualmente resultou no óbito da referida servidora pública municipal”. O vínculo atual entre prefeitura e o hospital gestor expira em 2028, último ano do atual governo municipal.
REAÇÃO JURÍDICA
Ainda de luto, a família de Josi Dias procura orientação jurídica por entender, pelos fatos e relatos, inclusive da própria servidora municipal, pelos vídeos gravados, que o caso tenha sido de negligência médica.
O escritório Dantas & Santana Advogados Associados assume o caso. O CEO, Lucas Emanuel Ricci Dantas, é especialista em Direito da Saúde e referência no Brasil na defesa do uso da cannabis medicinal.
Em nota à imprensa, publicada dia 16 de janeiro, Dantas diz que “todas as condutas serão apuradas e devidamente processadas, se necessária, tanto na instância administrativa quando na criminal e na cível”.

O advogado afirma ainda que “o legado” de Josi Dias “não pode ser esquecido e as eventuais condutas impróprias dos profissionais de saúde que a atenderam serão apuradas com rigor no que depender da família”.
PLANO DE ESPERA
Josi Dias morre no 10º dia do novo governo municipal, em meio a implantação de melhorias na Saúde, elencada a prioridade pelo prefeito eleito de Marília, o ex-deputado estadual, Vinicius Camarinha (PSDB).
O ‘Plano de 100 Dias’ anunciado durante a campanha eleitoral começa por um mutirão de exames, consultas e cirurgias a que Vinicius denominou de ‘Ganha Tempo da Saúde – Zera Fila’, iniciado oficialmente nesta sexta-feira (24).
Na prática, o município fatia R$ 9 milhões ao setor privado por serviços que sua própria rede não consegue entregar por falta de estrutura e profissionais. Entre as entidade elegíveis às contratações está a ABHU, gestora da UPA Norte e do PA da Zona Sul.
Enquanto isso, a melhoria no atendimento das duas unidades terceirizadas, citada entre as dez ações do ‘Plano de 100 dias’, aguarda seu lugar na fila de espera, lotações e reclamações pelos usuários da saúde pública de Marília.
“Já estamos tomando providências. São só 20 dias de governo. Estamos focando naquilo que é mais importante. Estou a par de tudo que está acontecendo nos postos, UPA e PA”, responde Vinicius, nesta quinta-feira (23), em sua conta no Instagram.

No Legislativo, a morte de Josi Dias não havia recebido sequer o habitual requerimento de votos de pesar por nenhum dos 17 vereadores até esta sexta-feira (24). Calou-se nas galerias a fiscalização assídua da mulher de cabelo azul.
A família da servidora municipal formalizou boletim de ocorrência com acusação de negligência no atendimento da UPA da Zona Norte e aguarda por investigação policial. O Giro Marilia e o blog acompanham o caso.

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