UM SOBREVIVENTE NO ALTAR
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UM SOBREVIVENTE NO ALTAR

Atualizado: 31 de mar. de 2022

Conheça a história do padre que calou um médico ateu ao sair de hospital de Barretos (SP) salvo da Covid-19. A trajetória do garoto que um dia sonhou ser caminhoneiro, inspirou-se em testemunho de vida de pároco candidato a beato da Igreja Católica e que hoje dirige cada palmo do chão da fé de duas paróquias vizinhas de Marília (SP)

De vota ao altar: Pe. José Antônio celebra missa no mesmo altar um ano após deixá-lo com sintomas de Covid

Empossado como administrador paroquial há menos de um mês, o padre José Antônio de Sousa, da Congregação Jesus Sacerdote (CJS), celebrou, no último domingo (26) a padroeira da Sagrada Família de Marília (SP).

Até então, o sacerdote não havia permanecido tanto em seu novo altar: mais de 1h30 de missa, inclusa uma longa homilia de 27 minutos, na qual tratou sobre o evangelho do dia, a família e a vida paroquial.

Cronograma comum, dado o caráter festivo da solenidade religiosa, sobretudo para alguém que praticamente um ano atrás havia deixado o mesmo altar sob o sério risco de não ter mais tempo para celebrar, nem de viver.

PELOS CAMINHOS DA FÉ

Demorou um certo tempo até que José decidisse qual seria seu lugar nas celebrações. Da catequese à pastoral vocacional foram-se os seus anos de sua infância, adolescência até o início de sua juventude.

Filho de pais divorciados, conheceu o trabalho aos 14. Começou como ‘garoto de recados’ em uma fábrica de calhas e, depois, arranjou uma vaga de auxiliar de serviços gerais em uma clínica de reabilitação.

Aos 17, o jovem José Antônio conseguiu um emprego no escritório de uma autoescola. Ali, associou o trabalho com a paixão de dirigir. “Gosto muito. Talvez fosse um caminhoneiro”, confidenciou o padre ao blog.

Ironia do destino, nesta altura da estrada de sua vida, ele percebeu que seria o momento de mudar a direção. Após três anos de reflexões em um grupo vocacional, decidiu que o melhor a fazer seria guiar almas pelos rumos do sacerdócio.

“Trabalhei até dois dias antes de entrar no seminário”, recordou o padre que, afeito às tantas lições que aprendeu para habilitar-se à nova vocação, pegou a estrada para seguir seu novo caminho. Destino: Marília.

SACERDÓCIO AOS 30

Em sua nova cidade estudou Filosofia no Seminário Sagrado Coração de Jesus (atual Faculdade João Paulo II, a Fajopa), de 1995 a 1997 e Teologia no antigo ITRA (Instituto Teológico Rainha dos Apóstolos), entre 1999 e 2002.

Residentes na casa da congregação ao lado do Santuário São Judas Tadeu, os seminaristas da CJS hoje cursam o bacharelado de Filosofia na Fajopa e o de Teologia no Centro Universitário Salesiano Pio XI, em São Paulo.

Casa da CJS em Marília: seminaristas e sacerdotes da congregação residem, estudam e celebram na cidade

Durante sua formação, José Antônio diz ter se motivado pelo testemunho de “padres humildes e sempre disponíveis”. Entre estes, seu pároco da então capela São Luís Gonzaga, de Barretos (SP), o padre André Bortolameotti (1919-2010).

Santa referência: Pe. André Bortolameotti (1919-2020) foi pároco do Pe. José Antônio em igreja de Barretos (SP)
Conhecido por suas iniciativas sociais e pastorais, o sacerdote que serviu de exemplo ao então seminarista José está em processo de beatificação. Bastará um milagre sob sua intercessão para que seja declarado beato. Com dois, será alçado a santo pela Igreja Católica.

Como de costume, o postulante à ordenação retornou à sua comunidade de origem para receber seu sacramento. José não encontrou mais uma capela, mas uma nova igreja, ‘promovida’ a paróquia um ano e meio antes.

De casa cheia: comunidade de São Luís Gonzaga, de Barretos (SP), prestigiou ordenação de Pe. José em 2003

Diante de uma igreja lotada, José Antônio foi ordenado padre na noite do dia 27 de setembro de 2003, aos 30 anos, pela imposição das mãos do então bispo emérito da Diocese de Barretos (SP), Dom Pedro Fré (1924-2014).

Unção episcopal: sob as mãos do bispo emérito, Dom Pedro Fré (1924-2014), José foi ordenado sacerdote
Desde então, passaram-se 18 anos, a idade mínima para retirada da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) no Brasil. Aos 48, o 2º sacerdote de sua congregação no país hoje dirige duas paróquias – 'carta' dada para poucos na Diocese de Marília.

MÃOS NO ALTAR

Coube ao reitor do Santuário São Judas Tadeu e então futuro sacerdote da Sagrada Família a celebração da padroeira em 2020. Convidado pelo então pároco da comunidade, o cônego José Carlos Dias Tóffoli, ele preferiu a missão ao refúgio naqueles dias de pandemia.

Era 27 de dezembro. Marília anunciava sua 100ª morte pela Covid-19 – um homem de 69 anos, diabético, hipertenso e obeso. Havia 79 pessoas internadas, das quais 40 já haviam positivado para o vírus.
Póstumo anúncio: Marília divulgava, em 27 de dezembro de 2020, sua 100ª morte provocada pela pandemia

Naquela mesma noite, padre José Antônio subiu ao altar. Rezou pelas famílias, inclusive as enlutadas, apesar dos contornos festivos, diante de uma igreja demarcada pela distância física e presencial de seus fiéis.

Ainda durante a celebração, o padre percebeu que algo não estava bem consigo. Por vezes, buscou apoio no altar para disfarçar o mal-estar, de modo que pudesse encontrar forças para chegar até a benção final.

O gesto, testemunhado por alguns paroquianos, remeteu ao raro exemplo de resistência pela vida e pela vocação sacerdotal protagonizado pelo primeiro pároco da comunidade, o italiano Próspero Vecchione (1920-2005).

Exemplo de resistência: Doente, Pe. Próspero (1920-2005) escorou-se muitas vezes no altar para concluir missas
Já afetado por várias comorbidades em seus últimos anos de vida, o velho franciscano insistia em celebrar suas missas, sob o risco de desfalecer, enquanto levantava o cálice com uma mão e se segurava para não cair com a outra.

RECLUSÃO

Encerrada a celebração, padre José Antônio retornou à sede da CJS, onde ainda hoje reside, ao lado do Santuário São Judas Tadeu, do qual é reitor. A Sagrada Família, hoje sob sua administração, é uma das comunidades vizinhas.

Mesmo sem febre, nem tosse, o padre buscou apoio médico ainda na segunda-feira (28) em um posto de saúde. Foi orientado a ficar em reclusão absoluta e passou o réveillon para 2021 isolado em seu quarto.

Orientado por uma sobrinha enfermeira, que atuava na linha de frente do combate à pandemia em Barretos (SP), o padre passou a acompanhar sua saturação diária, enquanto relatava seu estado de saúde por chamadas de WhatsApp.

“A médica que me atendeu me orientou a procurar a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) somente se tivesse falta de ar. Se não, faria o tratamento apenas em casa”, relatou o padre ao blog. Mas, o quadro se agravou.

“Os medicamentos não fizeram efeito e meu cansaço foi aumentando cada vez mais. Por uma semana fiquei sem paladar e sem olfato”, contou. “Mesmo sentado já não conseguia ficar. Era um cansaço extenuante”.

INCREDULIDADE MÉDICA

O Ano Novo começou sem banho e com saturação abaixo de 90. Diante da situação, a sobrinha decidiu buscar pessoalmente o tio padre: forrou o carro e, paramentou a si e ao marido, e partiu dia 1º rumo a Marília.

O destino foi o Hospital Nossa Senhora, unidade de alta complexidade para atendimentos particulares e convênios, reservado para o socorro exclusivo em Barretos (SP) para o enfrentamento à pandemia.

“Cheguei nos piores dias da Covid-19 no hospital. Passei por vários exames e fui para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Estava consciente de tudo. O médico quis me entubar, mas pedi pelo amor de Deus que não. Não voltaria mais”.

O procedimento, no entanto, dependeria da evolução do quadro clínico pelas horas seguintes. Passaram-se dois dias. Fraco, alimentado e submetido à limpeza de suas necessidades na própria cama, o padre resistiu.

Ainda mais quatro dias, e apesar de todas as adversidades, veio a alta, em 8 de janeiro. “A minha melhora foi muito significativa no penúltimo dia, de 100%. Não fiquei nem com oxigênio de cilindro”, contou.

A saída supostamente tão repentina para alguém que havia chegado a tempo de ser entubado animou os médicos, mas intrigou particularmente um, ateu. A confissão coube a uma enfermeira de quem o padre havia sido orientador espiritual.

“Ela me contou que eu havia chegado muito mal e os médicos acreditavam que o senhor não sairia vivo daqui. O que era ateu teria entrado no meu quarto e dito: ‘Este é o padre? Se Deus existe mesmo vamos ver como ele vai sair daqui’”.

De pronto, o padre compreendeu a reação do médico por ocasião de sua saída, pela porta da frente. “Ele não acreditava. Olhava em mim, nos aparelhos. Já estava sem oxigênio”, contou. Procurado pelo blog, o hospital não se manifestou sobre este relato. O nome do médico não foi informado.


A CURA

Liberado, o sacerdote seguiu sua medicação à risca. Tomou um antibiótico por cinco dias. Do hospital, ele seguiu direto para a casa da mãe de 81 anos, que ficou sabendo apenas naquele momento sobre tudo que havia passado.

O sacerdote ainda ficaria mais 20 dias ao lado da família antes de retornar a Marília. Ainda em Barretos (SP), em consulta com um pneumologista, descobriu que a Covid-19 havia comprometido 60% dos seus pulmões.

Submetido a novos medicamentos, à fisioterapia pulmonar e a uma nova rotina de caminhadas, o padre recuperou o fôlego. Em julho de 2021, passou por nova tomografia dos pulmões, conforme recomendação médica.

“Meus pulmões estavam limpos. Não ficaram sequelas da Covid”, contou o sacerdote. Esta recuperação, aliás, foi compartilhada com suas comunidades – na Sagrada Família, por exemplo, durante uma homilia.

Sobrevivente ao vírus mais letal da humanidade nos últimos dois anos, o padre sofreu um descolamento da retina do olho esquerdo, já operado e com o qual enxerga apenas 40%. “Não há relação com a Covid”, comparou.

De altar novo desde o último dia 1º, o padre José Antônio viu dobrar suas responsabilidades à frente das duas comunidades vizinhas. Ultimamente, ele anda oxigenado de disposição para dar conta dos compromissos.

Domingo (26), debaixo de forte calor, José Antônio não retirou seus paramentos até que passasse o último carro da longa carreata da Sagrada Família. O padre que um dia sonhou ser caminhoneiro conhece cada palmo deste chão da fé do povo de Deus.

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