Blog do Rodrigo desce aos bastidores do projeto de lei que propõe a troca de uma dívida milionária da Prefeitura de Marília por poços com Daem e extrai fatores que devem assorear de vez a proposta. Confira a pauta completa da 8ª sessão remota
Quinze meses depois de abastecer a Câmara Municipal de Marília com debates canalizados por várias sessões e uma audiência pública, o Projeto de Lei 135/2018, que autoriza a prefeitura municipal a trocar uma dívida milionária com Departamento de Água e Esgoto de Marília (Daem) pela dação de poços, está de volta ao plenário, apenas para votação, em 2ª discussão, na tarde desta segunda-feira (6).
Como ainda gotejam muitas dúvidas, o Blog do Rodrigo desceu a fundo na questão para entender como a administração pública municipal pode – inclusive, legalmente – deixar de pagar a própria conta de água e esgoto por tanto tempo – pelo menos, desde 1991. A extração de respostas às indagações do projeto de lei demandou semanas de perfuração - e nem tanta vazão.
FONTE DE RECURSOS
A fonte dos recursos ordinários do Daem sempre foram as tarifas e os serviços de abastecimento de água e esgoto. O artigo 22 da Lei 1.369 de 13 de dezembro de 1996, que criou a autarquia, é clara quanto à necessidade da manutenção desta rede de recebimentos:
“É vedado ao Daem conceder isenção ou redução de tarifas dos serviços de água e esgotos, inclusive a entidades públicas federais, estaduais, municipais ou autárquicas”.
A política de flexibilização dos valores cabe à prefeitura – a quem o Daem deve subordinação na administração pública em Marília. Ao longo das últimas décadas, as gestões municipais promoveram sucessivos programas de anistia, com parcelamento de débitos e eliminação de juros.
Em 1993, o então prefeito de Marília, Salomão Aukar (1931-2019), reorganizou o Daem e manteve, inalterada, a redação do artigo 22 da 1.369, agora como artigo 29º. Ou seja: confirmou a vedação de isenção da conta de água e esgoto para prédios públicos municipais, por exemplo.
ISENÇÃO MUNICIPAL
Em 2011, no entanto, a prefeitura, sob a administração de Mario Bulgarelli, modificou justamente o artigo 29º com o propósito de legalizar o não pagamento de contas de água e esgoto através do Projeto de Lei 20/2011. A Câmara aprovou.
“O Daem, contudo, é órgão da própria administração municipal, não tenso sentido a cobrança em relação à prefeitura. Se ele fosse, por exemplo, uma secretaria municipal, não haveria essa cobrança”, argumentou Bulgarelli, na época.
A alteração seria revogada no ano seguinte por Ticiano Toffoli (PT), que assumiu o cargo após a renúncia de Bulgarelli. Toffoli havia sido diretor do Daem entre 2009 e 2010.
“Essa revogação foi feita no sentido de que o Daem mantivesse a sua estrutura e manutenção, desde a captação e a distribuição. Não basta estar cobrando a população. O poder público precisa disponibilizar água para todo cidadão”, afirmou Ticiano ao blog. Procurado, Bulgarelli não respondeu às mensagens.
ACORDO LEGAL
Em 2015, a Prefeitura de Marília, já sob a gestão de Vinícius Camarinha (PSB), instituiu um ‘programa relâmpago’ de incentivo de arrecadação para o Daem, válido por apenas 30 dias. Apesar de atingir devedores em geral, a legislação foi feita sob medida para beneficiar a própria administração.
A Lei Complementar 730/2015 permitiu ao município um grande e até então inédito acerto de contas com a autarquia, com direito a eliminação de 100% de multas e juros, o que acabou por reduzir a dívida para R$ 35,6 milhões.
O valor foi dividido em 240 parcelas – o máximo previsto pela lei. Os pagamentos começaram em setembro de 2015 e, se mantidos em dia, terminam apenas em dezembro de 2040. Até o momento já foram pagos R$ 10,4 milhões. O valor final, somada a correção monetária de cada mês, deve ultrapassar os R$ 50 milhões.
A aprovação da LC 730/2015 ocorreu apenas um mês antes do projeto que aprovou a concessão do Daem. À época, a renegociação da dívida foi vista como uma forma de ‘preparar’ a autarquia para a cessão dos seus serviços. Mas, barrada pelo Tribunal de Justiça (TJ), a lei acabaria revogada pela Câmara em dezembro de 2017. Procurado pelo blog, o agora deputado estadual não comentou sobre o assunto.
RESTOS A TROCAR?
Apesar do acordo de 2015, cujos pagamentos seguem em dia, segundo informou a administração municipal ao blog, parte da dívida entre a prefeitura e o Daem ainda ficou pendente. Os débitos não parcelados ultrapassam os R$ 18 milhões.
São R$ 11,8 milhões, de janeiro de 1992 a dezembro de 2016, referentes a 23.129 contas de 494 ligações, e R$ 7,4 milhões de janeiro de 2017 a maio de 2022, de 14.088 contas de 491 ligações, segundo dados fornecidos pelo Daem.
É para ‘pagar’ o valor maior – de 1992 a 2016 – que a administração de Daniel Alonso (PSDB) resolveu propor a dação de poços “em concordância com o Daem”. No caso, em sintonia com o ex-presidente Marcelo José de Macedo.
“Como a dívida já vem de longa data, acho viável a proposta. Reduz bem o valor, o Daem passa a ter um ativo maior e, com isso, um valor mais expressivo”, afirmou Macedo ao blog. “Além do mais, os poços foram adquiridos pela prefeitura. Nada mais justo neste momento para que consigamos resolver esse problema”.
DAÇÃO
A opção de dação em pagamento é legal. Consta no artigo 356 do Código Civil, onde se lê: ”o credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida”. O artigo 17, inciso I, a, da Lei 8.666/93, estabelece que fica dispensada a realização de licitação para dispor do bem público, porém, para que ela seja realizada são necessários alguns requisitos.
São eles: I- autorização legal (no caso, pela Câmara Municipal de Marília); II- avaliação prévia do bem público a ser transferido (já concluído); e III- demonstração de interesse público na celebração desse tipo acordo (a ser manifestado pelo voto de cada um dos vereadores).
“Para verificar a possibilidade da dação em pagamento pelo ente público é necessária também a análise da possibilidade de desafetação do bem, a fim de se verificar se o bem público pode ser alienado”, observou o especialista em Direito Público, Igor Azevedo, do escritório Azevedo, Pierote & Druzian de Marília.
Ex-procurador jurídico do Daem, o pró-reitor acadêmico e coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília (Univem), Edinilson Donisete Machado diz que a dação “é uma forma de regularizar a questão de caixa”. “É uma mera regularização jurídica. Não há consequência nenhuma para o patrimônio público. Em vez de estar da direta, passa pela indireta”, afirmou.
A Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Marília Transparente (Matra) classifica a dação como “absurda”. A entidade defende a autonomia administrativa e financeira do Daem e evoca o artigo 17º da lei de sua criação, que diz:
O patrimônio inicial do Daem será constituído de todos os bens móveis e imóveis atualmente usados no sistema público de água e esgotos sanitários os quais lhes serão entregues após inventário (...) sem qualquer ônus ou compensações e independentemente de quaisquer formalidades”.
“Assim, para se projetar, executar obras, autorizar licitações, etc. – que digam respeito aos serviços de água e esgoto – é preciso que o gestor público esteja autorizado por lei, caso contrário o ato é nulo. E neste caso, quem está autorizado por lei é o Diretor Executivo do DAEM. Se a Prefeitura em algum momento tomou a frente e o fez, descumpriu a lei e os autores do descumprimento se sujeitam às consequências”, argumenta a Matra.
TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA
O PL 135/2018 foi protocolado no Legislativo em 15 de agosto de 2018 quase três meses depois a criação de uma comissão especial “destinada a realizar estudos quanto aos bens patrimoniais adquiridos e/ou construídos pela Prefeitura Municipal de Marília e que são utilizados exclusivamente pelo Daem, objetivando a utilização desses bens como dação em pagamento de débitos da prefeitura junto à referida autarquia”.
Nomeada pelo prefeito Daniel Alonso (PSDB), a comissão foi composta pelo procurador geral do município e os secretários municipais da Fazenda e do Planejamento Urbano. Ou seja: nenhum representante do Daem.
Segundo documentos a que o blog teve acesso, a primeira participação técnica da autarquia no trâmite do projeto de lei foi o pedido de envio de valores atualizados de todos os bens móveis e/ou imóveis pertencentes à prefeitura que estivesse sob sua utilização.
Àquela altura, em junho de 2018, a resposta que o Daem obteve é que “a maior parte dos imóveis (que estavam sob sua administração) não estão escriturados e não ocupam integralmente a área em que estão”.
POÇOS E CÁLCULOS
Segundo o PL 135/2018, foram selecionados nove poços tubulares profundos distribuídos pela cidade. A lista original, mantida no projeto de lei, é a seguinte:
· Poço tubular profundo, sistema de recalque e equipamento de bombeamento para exploração do Aquífero Guarani, próximo à barragem Cascata
· Poço tubular profundo – Bairro Primavera
· Poço tubular profundo, equipamento de bombeamento e rede adutora – Recinto de Exposições Santo Barion
· Poço tubular profundo para exploração do Aquífero Bauru no Distrito de Padre Nóbrega
· Poço tubular profundo, equipamento de bombeamento e reservatório no bairro Altos do Palmital
· Poços tubulares profundos nos bairros Jardim Primavera, Jardim Marajó, Jardim Esplanada e Luiz Homero Zaninotto.
A avaliação dos imóveis a serem eventualmente dados pela prefeitura ao Daem teve como critérios os valores investidos por ocasião de suas licitações – ocorridas entre 2008 e 2014 – com correção monetária, juros e multa. Somados, os valores atingiram R$ 12,9 milhões.
Ou seja: apesar de ser a devedora, a prefeitura conseguiu ajustar um ‘crédito’ junto à sua credora. A diferença, de pouco mais de R$ 1 milhão, será utilizada para o pagamento de parcelamentos anteriores, segundo propõe a administração no PL 135/2018.
AUDIÊNCIA PÚBLICA
Nove meses antes de ‘nascer’ do plenário da Câmara Municipal, para primeira discussão, o projeto de lei de dação de poços por dívidas entre prefeitura e Daem foi tratado em audiência pública requerida pelo vereador José Luiz Queiroz (PSDB) e realizada em 4 de setembro de 2018.
“Este é o melhor caminho a ser tomado”, defendeu o então procurador geral do município e atual assessor de assuntos estratégicos, Alysson Alex Souza e Silva. “Essa compensação sana uma pendência muito grande ao Daem”, complementou o servidor da autarquia, Cestore da Silva Pereira.
Ex-presidente do Daem por duas vezes – 1997-2001 e 2003-2004 – o vereador Luiz Eduardo Nardi (Podemos) questionou qual vantagem econômica o Daem teria com a proposta da prefeitura. “Esse projeto serve simplesmente como uma manobra contábil. A prefeitura tem que pagar o deve”.
Presidente do Legislativo quando do recebimento do PL 135/2018, o vereador Delegado Wilson Damasceno (PSDB) afirmou que o Daem “não é um inquilino da prefeitura”. “Ao longo do tempo, a autarquia fez a manutenção dos poços. Isso também vai ser incluído na conta?”, questionou.
OUTROS POÇOS?
Apesar dos debates acalorados na audiência pública, faltaram explicações. Foram cobrados dados como as escriturações das áreas dos poços profundos e a origem dos recursos – próprios ou de convênios – que viabilizaram a perfuração dos poços.
Nem todos os poços estavam escriturados. Alguns, nem matrícula tinham. As áreas escolhidas estavam em nome da prefeitura, do Daem ou de terceiros – no caso da Examar, com duas penhoras.
Por último, vencidas as regularizações, as referências dos poços foram modificadas em relação ao ‘caput’ do projeto. Ficaram assim:
· I - Cascata
· II - Área ‘A’, lote 4, rua Domingues de Oliveira, no Parque Nova Almeida
· III – Examar
· IV – Área ‘A’, parte da quadra 2, Padre Nóbrega
· V – Lote 8, quadra 3, Altos do Palmital
· VI – Bairro Homero Zaninotto, Jardim Damasco I, II e III e Esplanada
O blog visitou os poços. Em comum, mato alto e a aparência de que a visita de servidores por ali não é frequente. A exceção, para muito pior, foi o ‘ex-poço’, do bairro Homero Zaninotto. Mesmo desativado, seguiu na lista de dação ao Daem.
Até a publicação desta matéria, a prefeitura não havia confirmado a origem dos recursos aplicados na construção dos poços escolhidos para o PL 135/2018. O prefeito Daniel Alonso (PSDB) também não atendeu às sucessivas solicitações de posição sobre o assunto.
Aprovado em primeira discussão, por 9 votos a três, o PL 135/2018 está fadado a assorear de vez nesta segunda (6). Só não foi há poucas semanas porque o vereador Marcos Custódio (Podemos) pediu vista – aliás, pela segunda vez, na mesma matéria.
PAUTA DA SESSÃO DESTA SEGUNDA-FEIRA (6):
I – PROJETOS A SEREM CONSIDERADOS OBJETO DE DELIBERAÇÃO
1 – Projeto de Emenda à Lei Orgânica nº 1/2020, do vereados Marcos Custódio (Podemos), incluindo o artigo 63-A na Lei Orgânica do Município de Marília. Instituindo a obrigatoriedade de elaboração do Programa de Metas pelo Poder Executivo. Votação qualificada. (Processo incluído na Ordem do Dia a requerimento verbal, aprovado, de seu autor).
2 – Projeto de Lei nº 199/2019, do vereador Maurício Roberto (PP), denominando Coronel PM Irahy Vieira Catalano o espaço público – canteiro central, ocupado por araucárias, na avenida Brigadeiro Eduardo Gomes, defronte ao acesso para o Residencial Village Damha Marília.
3 – Projeto de Lei nº 23/2020, do vereador Delegado Wilson Damasceno (PSDB), denominado Valentim Teodoro do Souto a Academia ao Ar Livre instalada na área compreendida entre as ruas alexandrina Rodrigues Gotuzo, Lupércio e Corifeu de Azevedo Marques, no Núcleo Habitacional Dr. Fernando Mauro Pires Rocha.
II – PROCESSOS CONCLUSOS
1 – Segunda discussão encerrada e aguardando votação, em decorrência de pedido de vista, do Projeto de Lei nº 135/2018, da Prefeitura Municipal, autorizando a Prefeitura Municipal de Marília a desafetar e a alienar ao Departamento de Água e Esgoto de Marília – DAEM, e este receber os bens que especifica, mediante dação em pagamento de débitos da municipalidade com serviços de água e esgoto referentes ao período de dezembro de 1991 até a data anterior à vigência desta Lei, que não tenham sido incluídos em parcelamentos anteriores. Dá outras providências. Há emendas. Votação qualificada.
2 – Discussão única do Projeto de Lei nº 49/2020, da Prefeitura Municipal autorizando o Poder Executivo a abrir créditos adicionais especiais no orçamento vigente do município para Construção de portais e Construção de Mirante e dá outras providências.
3 – Primeira discussão do Projeto de Lei nº 9/2020, do vereador Luiz Eduardo Nardi (Podemos), modificando a Lei nº 7217/10, referente a datas comemorativas e eventos do Município de Marília, incluindo o “Dia do Samu – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência”, no dia 15 de setembro.
4 – Primeira discussão do Projeto de Resolução 2/2020, da Mesa da Câmara, dispondo sobre a instituição do Arquivo Público da Câmara Municipal de Marília. Há emenda em 2ª discussão.
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