MEU AMIGO MONSENHOR
- Rodrigo Viudes
- há 4 dias
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Atualizado: há 21 horas
Minhas memórias póstumas, sem filtros, de Achiles Paceli de Oliveira Pinheiro, o padre que aprendi a amar. Nossas histórias de encontros, desencontros e reencontros e bastidores da histórica entrevista em Quintana (SP)

Às 17h34 de segunda-feira (6), na semana dedicada à Padroeira do Brasil, desceu à sepultura número 83 do Cemitério da Orquídeas, em Marília (SP), o corpo do vigário da Paróquia Nossa Senhora Aparecida de Oriente (SP), o monsenhor Achiles Paceli de Oliveira Pinheiro, aos 86 anos.
A Diocese de Marília se despediu de um de seus decanos, que por mais de sete décadas – incluso o ingresso no seminário, aos 11 anos – dedicou sua vida à Igreja Católica nas paróquias que fundou e serviu como um monsenhor de sua história.
A família chorou a morte do tio, caçula e último remanescente de um lar católico formado em Brotas (SP) nos anos 1930. E eu – sim, este jornalista – também. Não há condições para uma análise fria. O texto hoje é em primeira pessoa. Perdi um amigo.
PRÓLOGO
Tenho poucas amizades entre os presbíteros da Santa Sé. Algumas, aliás, estiveram entre as dezenas de padres que abdicaram da folga clerical de segunda-feira para acompanharem a missa de exéquias do colega de batina em Oriente (SP).
O motivo pelo meu restrito círculo de amizades no clero deve-se, decerto, à minha atuação como jornalista investigativo em casos envolvendo crimes praticados por religiosos - alguns, publicados neste blog. Somos poucos neste ofício no Brasil.
Ainda assim, talvez por mercê da convivência de anos ou décadas, conto com a fraterna amizade de abnegados sacerdotes – e pastores –, os quais chamo pelo nome, sem formalidades, porque irmãos de fé e de vida.
ENCONTROS
Assim era, por exemplo, com Achiles. Alguém de quem tenho minhas mais remotas memórias nas primeiras missas celebradas na Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, fundada por ele, em 1989. Acompanhava minha avó, então residente no bairro Costa e Silva.

Seis anos antes, ele havia esticado os flancos do alcance da Igreja Católica nas periferias da zona sul, erigindo, em 1983, a Paróquia Santa Rita de Cássia, no coração das três mil casas do recém-inaugurado bairro Nova Marilia.
Eu me reencontraria com Achiles apenas em 2005, ano marcado por dupla perda à Igreja Católica: do papa São João Paulo II, que o havia intitulado monsenhor, em 1990; e do padre Próspero Vechione, a quem substituiria na Paróquia Sagrada Família, na zona norte de Marília. Ambos nascidos em 1920.
DESENCONTROS
Achiles assumiu uma comunidade que havia sido administrada nos últimos 26 anos pelo mesmo padre – que, importante frisar, a ela dedicou a própria vida, literalmente. Nem as doenças lhe tiravam do altar, no qual se apoiava com uma das mãos para elevar a Eucaristia.
À época, o monsenhor trouxe consigo a experiência da gestão paroquial, mas seu temperamento forte veio no pacote. Por duas vezes tivemos desencontros que selariam um período de distanciamento um do outro.
Na primeira, ele escorraçou a proposta que apresentamos para recuperação da biblioteca da paróquia. Começou me advertindo que havia escrito errado no informativo. Não era vigário, mas um administrador paroquial. Até aí, tudo bem.

Depois, rejeitou as ideias de tal forma que o catequista que me acompanhava saiu desolado. Da mesma forma, duas coordenadoras de catequese que formavam comigo um triunvirato, conheceram sua ira após encontrá-lo na sacristia.
A conversa que se seguiu entre nós não foi das mais fáceis. Foi um tal de “mais respeito” pra lá e “vai ser assim e pronto” pra cá. O embate terminou como que numa partida de futebol, sem vitoriosos, um para cada lado.
REENCONTROS
Fato é – e não percebi à época – o monsenhor já não podia entregar todo vigor de antes, ainda que tratasse das questões administrativas e pastorais da paróquia com muito esmero. A idade já lhe começara a pesar. Neste contexto, ele indicou alguém que viria ser substituto.
Em 2012, Achiles acolheu, de Roma para Marília, em sua Sagrada Família, o padre Edson de Oliveira Lima. Aquele mesmo rapaz, cuja vocação inspirou, a ponto de trocar promissora carreira no futebol profissional pelo ‘time’ do sacerdócio.

Naquele ano, deixei Marília a trabalho rumo a Bauru, depois São Paulo, retornando à minha cidade natal, e à convivência na mesma paróquia, em julho de 2013. Quando chego reencontro um ‘outro’ Achiles que nunca conhecera antes.
Talvez sem o peso da gestão de uma igreja, agora como vigário, o monsenhor parecia mais leve, inclusive no trato com os mesmos fiéis de antes. Pelo menos foi esta a minha primeira impressão ao ser fraternalmente acolhido.
JUSTIÇA SOCIAL
Naqueles dias, Achiles era um dos poucos padres da Diocese de Marília que caminhavam lado a lado de seu pároco e pupilo Edson em uma das manifestações de rua de julho de 2013, a que se deu o nome de Marcha da Cidadania.
Em Marília, além das demandas econômicas e políticas, o levante popular se pôs às ruas contra a agressão sofrida por pessoas em situação de rua. Todos os acusados – um secretário e três servidores – seriam condenados pela Justiça de Marília.
Achiles colocou-se publicamente ao lado dos agredidos, inclusive quando esteve no púlpito das homenagens, na Câmara Municipal, para receber o título de cidadão mariliense. Em discurso histórico, repetiu: “Olhem para as periferias!”.
CONVITE INESPERADO
Ainda em 2013, Achiles decidiu deixar a paróquia que havia servido nos últimos nove anos. A pedido, foi nomeado vigário paroquial da Paróquia São Pedro Apóstolo de Garça, onde passou a morar no ano seguinte.
O monsenhor e eu já não éramos os mesmos de antes. Ao menos, na qualidade de nosso relacionamento, mais respeitoso, afetivo. Por isso, minhas visitas, vez ou outra, à cidade vizinha, para tomarmos um café e jogarmos conversa fora.
Em 2016, Achiles decidiu distanciar-se mais ainda, mas apenas na quilometragem. Mudou-se para a Fundação Santa Cruz, uma comunidade mantida pelas Irmãs Mercedárias da Caridade, em Campos de Jordão (SP).
De vez em quando, ele retornava a Marília. Numa dessas passagens, Achiles me abordou pouco antes do início de uma missa. De pronto, mandou: “Estou aguardando sua visita lá, hein! Estou longe, mas não do outro lado do mundo”, brincou.
Eu cumpriria a promessa de visitá-lo nas férias escolares de julho de 2017. Achiles acolheu a mim e à minha família por dois dias com alegria e muita disposição. Fez-se nosso ‘guia turístico’ pela cidade, levando-nos para todo lado.
Numa das noites, nos acomodamos em confortáveis poltronas na sala de estar de seu amplo apartamento para acompanharmos nosso Palmeiras jogar. Em que pese o calor da hospitalidade, nunca havia encarado um lugar tão frio.

Em novembro daquele ano, Achiles resgataria um dos momentos registrados em nossa visita em seu perfil no Facebook, com palavras de conforto, dias após minha cirurgia cerebral para retirada de um cavernoma.
“Muito ânimo, amigo Rodrigo Viudes. Estamos rezando por sua completa recuperação. Deus abençoe muito você e sua querida família!”, escreveu. Retribuí o carinho pessoalmente em mais uma de suas ‘escapadas’ para Marília.
ENTREVISTA HISTÓRICA
Em 2019, o monsenhor reataria uma proximidade com padre Edson – de quem não se separaria mais, até seu último dia. A convivência paroquial seria retomada na comunidade de Nossa Senhora Aparecida, de Quintana (SP).
A curta distância a Marília – apenas 45 quilômetros – facilitou que nos víssemos com maior frequência, seja em missas dominicais, ou em visitas agendadas ou ocasionais, de meio de semana, na casa paroquial.

Em janeiro de 2022, solicitei uma entrevista ao monsenhor. Ele aceitou de pronto. Antes de sair de casa, decidi levar um celular a mais e meu filho Joshua, então com 13 anos, de tiracolo, como ‘operador de vídeo’.
Após me receber, Achiles nos conduziu ao seu gabinete – uma minibiblioteca, recheada de quadros e presentes. Ao notar o tripé, o arco de luz e a câmera apontada para ele, franziu a testa. “Posso filmar?”, perguntei. “Por que não?”, devolveu.
O aceite de Achiles ao registro em vídeo possibilitaria uma rara entrevista – que se tornaria histórica, porque única – em que ele esteve à vontade para tratar abertamente sobre si e de temas sensíveis à Igreja.
CONVERSA RESERVADA
Focado na entrevista, emendei uma pergunta atrás da outra. Achiles me respondia ao seu ritmo: pausado, reflexivo. Enquanto ouvia, checava a bateria do celular para me certificar de que pudesse conduzir meu roteiro até o final.

De volta para casa, chequei novamente as gravações. Para meu desespero, quase metade havia se perdido por problemas que, descobrimos depois, estavam no celular. Algumas reflexões sobre bastidores da igreja ficaram irrecuperáveis.
Telefonei na hora para o monsenhor e solicitei uma nova entrevista. Ele reagendou, sem sermões. Quatro dias depois, lá estávamos nós de novo em seu gabinete. Desta vez, antes da nova gravação, Achiles me pediu uma conversa reservada.
Fomos para outra sala. Ele fechou a porta. Afirmou ter refletido sobre tudo que disse e ter ficado preocupado com "algumas coisas". Para a sorte dele – e azar meu – haviam restado apenas respostas sobre sua trajetória pessoal.
“Sabe, Rodrigo, você é meu amigo, mas é jornalista”, começou. “Não quero me indispor com ninguém a essa altura da vida”, afirmou, então aos 83 anos. “Podemos gravar, mas veja lá o que vai me perguntar”, recomendou.
Voltamos ao gabinete. Ligamos a câmera e retornei ao meu roteiro. Desta vez, Achiles sinalizava com a mão o que responderia – ou não. É dever do jornalista perguntar - inclusive, de novo -, mas direito do entrevistado falar somente daquilo que quiser.
Da primeira entrevista, havia sobrado suas revelações acerca das tensões do clero com o primeiro bispo diocesano de Marília, dom Hugo Bressane de Araújo (1898-1988), no final da década de 1970 – do que nem precisei questionar.
Sobre o sucessor, dom frei Daniel Tomasella (1923-2003), Achiles o definiu como “aquele que organizou a casa”. A dom Osvaldo Giuntini, a quem auxiliou em diversas funções na Cúria, reservou afetuosa lembrança.
Questionado sobre o quarto e atual bispo de Marília, dom Luiz Antonio Cipolini, o monsenhor preferiu o silêncio. No meio da pergunta, já sinalizou negativamente com o indicador da mão direita. “Vamos em frente, Rodrigo”, orientou.
RARA FRATERNIDADE
Não é sabido – ao menos, de minha parte – que Achiles e Dom Luiz tenham tido qualquer desentendimento. Mas a distância entre ambos ficou evidente na homilia do bispo na celebração de segunda-feira (6).
Por 15 minutos cravados, dom Luiz discorreu sobre a parábola do bom pastor (João 10, 1-21), escolhida para o Evangelho, como se estivesse em uma celebração comum. Sobre Achiles, leu breve biografia. Não fez nenhuma menção pessoal.
Na mais próxima, errou. Disse que o monsenhor era torcedor do “Palmeiras Futebol Clube”, referindo-se à Sociedade Esportiva Palmeiras. Estivesse vivo, dado seu humor refinado, Achiles teria dito: ‘Nem hoje, dom Luiz?’.

Mas o bispo acertou a meta ao agradecer a padre Edson “pela acolhida e cuidados” com o monsenhor. “Para mim e para todo o clero, é um exemplo concreto de que o presbitério pode se realizar o verdadeiro intercâmbio de dons e amizade”, elogiou.
Aquele que acolheu o velho padre, não se desgrudou até o momento derradeiro. Edson celebrou o rito das exéquias, carregou uma das alças do caixão e não se afastou da sepultura até que as coroas fossem depositadas sobre a lápide.

Edson confidenciaria, ao final do funeral, que Achiles havia escolhido, cerca de um ano antes, o lugar onde faria seu descanso eterno: debaixo de uma frondosa sibipiruna. "Pelo menos aqui não vou tomar sol", argumentou o monsenhor.
A PERDA
Achiles passou mal na tarde de sábado (4). Foi socorrido inicialmente no Pronto Atendimento da Unidade Mista de Saúde de Oriente, inaugurado por seu colega monsenhor, ex-padre-prefeito, Nivaldo Resstel, 92 anos.
Dali, Achiles foi encaminhado ao Hospital Beneficente Unimar (HBU), em Marília, onde passou por cateterismo após os exames confirmarem a ocorrência de um infarto. Ele permaneceria na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).

No domingo (5), ainda em processo de recuperação, o monsenhor passou o dia sem intercorrências. À tarde, acompanhou a vitória de virada do Palmeiras no clássico contra o São Paulo. Seriam as últimas palpitações pelo seu clube preferido.
Na madrugada para segunda-feira (6), o coração de Achiles parou de vez após 86 anos de vida e 62 de sacerdócio. A morte seria oficialmente anunciada pela Diocese de Marília em postagem publicada às 3h37, por suas redes sociais.

MINHA DESPEDIDA
Vi Achiles vivo pela última vez na missa de 20 de setembro. Como de costume, nos últimos tempos, ele aguardou sentado, em silêncio. Proclamou o Evangelho, fez a celebração eucarística e declamou a oração ‘Alma de Cristo’.
Naquele sábado, resolvi não o importunar. Tínhamos um motivo comum para deixar a igreja o quanto antes: o jogo do Palmeiras, que começaria em seguida. Eu o vi saindo, discretamente, rumo à casa paroquial. O Verdão golearia o Fortaleza, por 4 a 1, para nossa alegria.

Uma semana antes, o calendário do Brasileirão não impediu o nosso contato – o último. Ao me ver, arregalou as sobrancelhas e lançou essa: “Fiquei sabendo que você virou comunista, hein Rodrigo!”. Gargalhamos.
“Conversa é essa, monsenhor? Estou estudando Ciências Sociais”, respondi. “Ah, bom. Então entendi errado”, desconversou, ainda rindo. Dei-lhe uma beijoca na careca, e recebi um abraço afetuoso. Foi nossa despedida.
Na segunda-feira (6), sentado no penúltimo banco da fileira principal da matriz de Oriente, o tempo parou a menos de dois metros de mim, ao lado da sacristia. As memórias, póstumas e recentes, me aliviavam do luto presente.
No domingo (12), Achiles não estará naquele altar. Em plena missa de Aparecida, padroeira do Brasil e de Oriente, desfalcará o elenco dos pecadores. Convocado por Deus, agora compõe o time celeste. Em verde e branco, claro.

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